domingo, dezembro 30, 2007

Benazir

A outra largou o marido porque ele não lhe permitiu fazer um jantar de Natal. Pegou as crianças e foi pra casa da mãe. “Não volto mais!”

Disse que ele não lhe deu o dinheiro para as compras de Natal; disse que não trabalha porque tem que cuidar dos dois filhos pequenos e da casa e do marido; disse que não ganha nada por seu trabalho doméstico; disse que não volta mais e pronto.

Não usa véu e mora num país livre, onde mulheres decidem seu destino, ainda que a sociedade machista, a política mercantilista e a corrupção “terceiromundista” lhes tornem árduo o exercício deste direito.

- Mas mulheres também são corruptas, não é privilégio masculino.

Claro! E quem falou o contrário? A própria Benazir Bhutto, líder paquistanesa assassinada esta semana, foi acusada de corrupção, deposta e exilada. No Brasil há outras tantas também acusadas. Mas - “Salve, Salve, Mãe da Pátria” – os mecanismos de deposição são outros, ainda que lentos e ineficientes.

- Lá está você novamente se equivocando. Benazir não foi morta por causa de corrupção, mas por representar os interesses norte-americanos num país islâmico.

Pois erraram de novo. Os EUA erraram ao apoiar Pervez Mussharaf pensando com isso poder conter o extremismo e mais ainda erraram ao acreditar que Bhutto, atirada aos leões paquistaneses, viveria para defender seus interesses.

O resultado é este que está aí: uma mulher corajosa morta, um Paquistão cada vez mais violento, um país cada vez mais extremista e uma bomba atômica nas mãos deles.

Num mundo globalizado como este dos últimos vinte anos, como disse Miriam Leitão (jornalista, O Globo on line, 28/12/2007), nenhum país está longe o suficiente do Paquistão. Talvez por isso, em pleno Natal, a bomba caiu atômica na casa dela quando seu marido chegou e encontrou o bilhetinho: “Não volto mais e pronto!”

Saiu furioso: - Mulher minha não sai assim. Foi embora? Embora nada, não tem dinheiro. Ela está pensando que a mãe vai segurar a barra com dois filhos? Ela volta... Eu não dou nenhum tostão de pensão. Se for isso o que ela quer, pode tirar o cavalinho da chuva. Não dou nada. Se quiser, deixa os meninos comigo. Ela pode ficar lá na mãe dela, não me importo, mas meus filhos ficam aqui comigo e acabou. Não sabe fazer nada direito, nem estudou, vai trabalhar em quê? Aqui tinha tudo: casa, comida, até televisão de vinte e nove polegadas. Quero ver se não volta... Se não voltar vou buscar à força. Montei casa e tudo pra essa mulher e agora ela sai assim? De jeito nenhum. E eu, como é que eu fico?

Quando os fogos de 2008 estourarem em nossos ouvidos, vire o ano de durma com um barulho desses...

Feliz Ano Novo! Vamos tentar novamente.

domingo, dezembro 23, 2007

Hô! Hô! Hô!

Morri de rir! A mulher esfaqueou o marido porque ele abriu o presente de Natal antes da hora, simples assim. E eu, que passei anos ao lado do meu, pensando em “esfaqueá-lo” todos os dias... Quer dizer, todos os dias não... No início queria matá-lo, mas apenas de amor. Ali pelo décimo primeiro ano de casamento, no entanto, bastava ele olhar pra um presente qualquer – e nem precisava ser de Natal – que eu já pegava uma faca de carne e conjeturava olhando para ele com aquele olhar assassino, sabe qual é?

Mas nada fiz. Aliás, fiz sim, quinze anos de análise e três anos de tratamento psiquiátrico, enquanto ele, o marido, achava o nosso casamento normal e se refastelava com outras mulheres e com sua vida própria, de futebol e chope com os amigos, com seu trabalho e, eventualmente, com seus filhos – que ele jurava serem as pessoas mais importantes na vida dele. Finalmente larguei ele pra lá, livrando-nos de uma tragédia.

Sei, minhas amigas (e meus amigos, é claro!), que essa vida não é privilégio meu, e cada vez que leio uma coisa assim, tenho mais certeza disso. Quem sabe por aí, entre as minhas leitoras (e leitores, é claro!) não se encontrem alguns que, ainda que secretamente, já não tenham pensado em dar pelo menos uns socos no amor da sua vida?

Mas não pode, tá? Isso aí é violência doméstica, coisa que vale tanto para homens quanto para mulheres. Mulher também não pode bater no marido não, senão “vai pagar cesta básica” como acontecia quando um homem batia numa mulher. Aliás, isso mudou. Agora quem bater vai pra cadeia mesmo. Por isso, meninas, nada de violência com eles.

A historinha do presente de Natal que mencionei ali em cima aconteceu nos Estados Unidos e, acreditem ou não, com um casal recém-casado, unidos em matrimônio em setembro de 2007. Fico eu pensando aqui e imagino que você também deva estar pensando: o que era o tal presente? A reportagem não informa, mas a gente pode tentar descobrir. É só responder: o que levaria alguém a uma atitude extrema?

Deixo aberta aqui esta brincadeira, dando eu o primeiro chute: acho que o presente era um vibrador no formato de Papai Noel.

E você o que acha?

Clica aí embaixo em “comentários” e deixe a sua sugestão. A mais original será o tema de uma próxima crônica aqui no blogue. Prazo para comentários até 2 de janeiro.

domingo, dezembro 16, 2007

O entocador de tumba

Tinha nariz de pinóquio e gostava de música. Onde andava estava com um fone ouvindo música em seu moderno e mínimo radinho-tocador. Era sujeito estranho. Não parava quieto. Sempre viajando de um lado para o outro, procurando coisas, sentimentos e tudo o mais que pudesse entocar para sua reserva, para o seu futuro, como fazemos com bons vinhos numa cava.

Mas ele não tinha uma cava. Os vinhos ele não guardava, bebeu todas as garrafas na mesma hora que esteve com elas frente-a-frente. Entornava mesmo. O resto de todas as coisas e sentimentos, no entanto, o entocador começou cedo a fechar em sua tumba, que na verdade nada mais era do que um cômodo sem portas nem janelas, totalmente hermético, lacrado com cimento e tijolo. Cada vez que ele conseguia coisas ou sentimentos, abria um buraco na parede e as entocava.

Estava fazendo reservas, justificava. Um homem tem que ter suas reservas, afinal de contas, não se pode estar sempre por um fio.

Só que o tempo passou e o homem com nariz de pinóquio foi ficando velho, surdo e cansado de viagens, cansado de procurar coisas e sentimentos. Já tinha muitas, não cabia mais nada na sua tumba. “É hora de parar” – Pensou – “e curtir as coisas e sentimentos que guardei”.

O entocador abriu novamente o buraco na parede e entrou na sua tumba para começar a usufruir, cansado, mas feliz. Havia conseguido muitas coisas. Era melhor lacrar novamente para que ninguém entrasse e tentasse lhe tirar aquilo tudo que havia, a tanto custo, guardado. Com cimento e tijolo, fechou-se dentro de sua tumba com suas coisas e sentimentos.

Primeiro foi buscar as coisas e percebeu que estavam destruídas pelo tempo ou comidas pelos insetos. Procurou os sentimentos, guardou tantos durante tanto tempo, deve ter sobrado algum... Mas nada. Dentro da sua tumba, os sentimentos sem vida para alimentá-los, estavam aniquilados, frios e mortos. Ele não sentia mais nada.

O homem que não sentia mais nada ainda pensou que tinha para si a música, mas de tão velho estava surdo e mal conseguia ouvir as belas notas agudas, e todas as músicas pareciam para ele tão graves, tão sombrias que começou a temê-las.

Viu-se no meio de tantas coisas inúteis, de tantos sentimentos perdidos, com seu nariz de pinóquio, entocado em sua tumba. Olhou para os lados procurando uma garrafa de vinho que pudesse dar-lhe alguma alegria, mas não havia guardado nenhuma para aquele momento nem para momento algum.

E estava só. Não havia, em todas as suas idas e vindas, conseguido guardar para si o que há de mais importante nesta vida: as pessoas à nossa volta, as pessoas que encontramos pelo caminho, as pessoas do mundo inteiro.

Neste Natal, pense nisso. Guarde pelo menos uma pessoa que seja, ao seu lado, e uma boa garrafa de vinho. O resto deixe na tumba.

sábado, novembro 24, 2007

Perigo nenhum

Celminha – assim com “c” mesmo – mora lá no alto, mas trabalha cá embaixo, na creche; seu marido, numa lanchonete em Copacabana.

- Aquela, assim, que fica numa esquina, sabe qual?

Há centenas de esquinas em Copacabana e, em praticamente todas, há uma lanchonete ou um bar ou um botequim, o que é mais comum - e reflete bem a cultura do bairro. Aliás, quantas esquinas têm em Copacabana? Vou contar qualquer dia, ando mesmo um bocado à toa...

- Mas é aquela que fica aberta até tarde... Ele chega sempre depois das quatro da manhã, daí nessa hora eu me levanto, vou até ele e a gente fica de “conversê” até de manhã... Sabe como é, né? Por isso eu tô com essas olheiras assim grandes...

Dividem os dois cômodos com os quatro filhos que devem ouvir o “conversê” de Celminha e seu marido.

- Nada! A gente conversa baixinho...

Imagino que deva ser bem perigoso subir o morro de madrugada, mas Celminha afirma que não. Perigoso mesmo é quando sobe a polícia.

- Daí sim, porque eles já sobem atirando pra todo canto. Nesses dias quem tá embaixo fica embaixo, quem tá em cima se esconde onde pode. As crianças vão prum buraco debaixo da cama que fizemos, porque eles ficam sozinhos lá depois da escola. Um cuidando do outro. Quando escuto os tiros aqui da creche, meu coração aperta, mas entrego a Deus. Ele sabe o que faz.

Será que sabe? Será que alguém sabe quantas esquinas têm em Copacabana?

Do lado da creche, bem ao lado, coladinho mesmo, tem uma escola municipal e, em frente a ela, guardando a segurança dos moradores, uma patrulhinha fica parada com dois policiais. No último tiroteio – esse que deu nos jornais, em que a polícia subiu o morro enlouquecida atrás do ladrão de galinhas, o Tico, de vinte anos, que roubou o italiano e que o jogou no meio dos carros na Vieira Souto – os dois permaneceram dentro da viatura, um lia o Dia D enquanto o outro lutava com seu celular, “pitocando” as teclas incansavelmente.

- A gente não pode fazer nada não. Não podemos nos meter com o morro. O morro é outro departamento. Nossas ordens são para permanecer aqui.

Também, pudera, mesmo se quisessem se mandar dali, só poderiam se fosse a pé, porque de carro, babau! Não dá. O pneu está furado há meses e deu pane no carburador. Saiu até nos jornais. Fizeram reportagem especial, entrevistaram autoridades, mas resultado mesmo, nenhum. A patrulhinha continua lá “guardando a segurança” no meio do fogo cruzado, como os filhos de Celminha e todos nós.

O Tico sumiu. Dizem que mataram para a polícia sair do morro. A mãe do rapaz tá desesperada. Celminha conhece ela e garante:

- São tudo gente boa!

sexta-feira, novembro 09, 2007

E a vaca foi pro brejo...

Alguém aí achou que seria diferente? No Rio de Janeiro é assim: se a vaca não for pro brejo sozinha, o carioca dá uma forcinha. Isso por causa da festejada hiperatividade crônica carioca, cuja famosa malandragem hoje chacoalha entre o vandalismo e o “vandalismo criativo”. O “ser malandro” hoje tem outra ginga. O cara malandro, mas malandro mesmo, dos dois mil anos, é aquele que emperra e diz:

- Quer apostar que eu faço?

E faz a coisa mais idiota do mundo só pra mostrar que é “fodão”.

- Então... Olha só... Deixaram a vaca ali sozinha porque quiseram. Tava pedindo pra ser pichada, Né? Pô!

Isso de começar uma frase com aquele “entãããão” arrastado é tão irritante quanto ver uma vaca do Cow Parade pichada: avacalhação! Tenho a impressão que o carioca arrasta esse “então” no começo da frase para dar tempo de pensar o que vai dizer no resto dela. Pior que isso só mesmo terminá-la com “pô”. Brilhante conclusão!

Assim como o leitor, eu também estou aqui matutando no significado da expressão “vandalismo criativo”, que pra mim parece uma tentativa de justificar o injustificável.

- se você não pode com o inimigo, junte-se a ele.

Deve ser isso. O “criativo” acabou virando o argumento dos covardes que não encontram (ou sequer procuram) as armaduras corretas para suas defesas, produzindo, assim, o espetáculo da “avacalhação carioca”.

- Então... Avacalhação é colocar esse monte de vacas espalhadas pela cidade, pô!

Há quem pense diferente, meu amigo, mas pensar é direito de cada um, ainda que uns tantos tenham pouco sobre o que pensar, e conduzam seus neurônios e minhocas para temas com “a importância das vacas da praia de Copacabana” ou “por que as paredes internas do metrô do Rio ainda não foram pichadas?”.

A parada das vacas tem feito tanto sucesso no Rio de Janeiro que a pichação de uma de suas estrelas tornou-se manchete nos jornais cariocas, que deram ao fato maior destaque do que a muitos outros assuntos importantes, como a estonteante notícias veiculada pelo Jornal Nacional, informando, no final da edição, que um avião da TAM teria feito uma manobra brusca no ar em pleno vôo comercial, assustando os passageiros que, em seguida, foram informados pelo comandante que a guinada serviu para desviar a aeronave de outra vinda em sua direção. Uma bomba no meio do caos aéreo brasileiro! Eu, que passava pela sala no momento da revelação, fiquei aguardando para saber mais, mas... Nem no tele-jornal, nem nos impressos. Ninguém falou mais nada e a vaca foi pro brejo mais uma vez, junto com a BRA.

Enquanto isso, nas esquinas cariocas, andam mugindo:

- Então... Pô!

sexta-feira, novembro 02, 2007

Nascida entre bruxas. E bananas!

Naquela noite me abandonaram na sala de cirurgia, de tão apaixonados que ficaram todos por você, aquele bebezinho lindo de grandes olhos negros... Já ali você começou a enfeitiçar o mundo, como uma das autênticas. O vigia me encontrou lá pelas duas da madrugada, eu pensando que aquilo ali era o céu, ainda grogue da anestesia:

- Que horas virão os anjos?

Tomou um baita susto quando viu meus olhos abertos surpresos e perguntou:

- O que é que você está fazendo aí?

Aquele homem de uniforme em nada se parecia um anjo, mas “não se deve julgar ninguém” – pensei, e disse:

- Estava lhe esperando!!!

O homem disse “hunf” e saiu apressado, resmungando:

- Deve ser mais uma bruxa! Ai que dia!

Fugiu aborrecido o meu anjo e eu continuei na maca até que ele retornasse com mais dois "gabriéis" que me levaram para o quarto. Só fui te ver novamente no dia seguinte. Linda!

Certo, certo! Eu sei que já contei essa história trilhões de vezes pra todo mundo e sempre no dia do seu aniversário, mas é que as mães têm esse direito, o de repetir a mesma história do nascimento de seus filhinhos no dia de seus aniversários, ainda que seus filhinhos já não sejam mais lá tão “inhos” assim... Adoro contar essa história, aliás, adoro contar todas as histórias! E adoro suas reações com as histórias que conto, como esta última da casca de banana rejeitada. Você achou engraçada enquanto eu ainda me espanto com a reação daquele homem, indignado e ofendido por eu ter colocado a casca da banana comprada em outra barraca, na lixeira da barraca dele.

Mas você tem razão, de certa forma, agora que estou aqui em casa, tranqüila e longe daquela feira barulhenta, estou até rindo mesmo da situação.

E dá pra rir desde antes, inclusive, na barraca em que comprei a banana, quase duas da tarde e eu morta de fome e de calor naquela Teresina de cajuínas cristalinas:

- Quanto custa a banana?

- Um e cinqüenta a dúzia.

- Mas eu quero uma só...

Crente que a cabocla ia me oferecer a banana, fiquei surpresa quando ela apreçou:

- Quinze centavos.

Difícil achar quinze centavos dentro dessa bolsa de viajante, mas cavoucando bem lá dentro acabei encontrando uma moedinha de vinte e cinco.

- Fique com o troco – Disse eu “generosa”.

- Quero não. Tome seu troco. – Lá estava eu aprendendo com a vida!

Hoje rio, mas fiquei um bocado atônita com aquele homem tirando de dentro da cestinha de lixo a casca da banana e jogando no chão, com as mãos nos quadris, sotaque nordestino, desafiador.

- Oxente! O que é isso? Onde já se viu uma coisa assim?

E eu parada sem reação. Tão gostosa a banana, tão amiga naquele momento de fome extrema, tão minha depois dos quinze centavos, e aquele homem jogando sua casca com raiva naquele chão tão imundo das ruas do centro de Teresina. Ela não merecia isso! Um fim tão indigno. Tanta gente olhando e eu tão sem reação.

Corri lá dentro das minhas gavetas para encontrar uma saída para minha catatonia e, num rompante de solidariedade com aquela casca rejeitada, me desculpei com o homem, abaixei-me e recolhi do chão, com as duas mãos, os restos mortais da deliciosa banana, com a reverência que merece um corpo morto depois de cumprida sua tarefa nesta vida.

- Você é louca, mamãe!

Sou nada!

Louco é aquele homem incapaz de receber em sua lixeira a casca da banana de outrem e loucos são os médicos que me esqueceram na mesa de cirurgia logo depois que você nasceu – tá certo que você sempre foi assim linda, maravilhosa, apaixonante, delirante, inteligente, cheirosa, amorosa, gostosa...

- Mãe!!!

Tá bom, parei.

P.S. Feliz aniversário, minha amora!

quarta-feira, outubro 10, 2007

As Vacas de Copacabana

Saí cedo. Não é fácil pegar um lugar ao sol, ainda mais ao lado dele. Então saí cedinho, acompanhando o dia que crescia colorido, um dia limpo, sem névoas, sem máculas. Um dia assim feliz, assim carioca!

Pedi licença ao “Jonas Calo” que está morando no meu mindinho direito e meti os pés num conga... Ops! Que coisa antiga: conga! Pois meti os pés num tênis e o resto num vestidinho voal.

E fui desse jeito, como a brisa – se é que a brisa se põe de vestidinho voal e tênis – andar no calçadão, tomar meu sol de sábado, ver aqueles outros “eus” caminhantes, pra lá e pra cá com seus “walk-mans...” Ops! Olha eu de novo no mundo do antigamente!

Pois estavam lá os outros “eus” caminhantes com seus cada vez menores MP3 Players, de um lado para o outro, alguns disputando a ciclovia com os ciclistas-atletas e os ciclistas-papais com seus filhotes de cadeirinha.

- O mar continua ali, desde sempre. As montanhas também. Vou passar por esta vida e as montanhas vão ficar, o mar vai ficar... Mas por quanto tempo?

Os olhos para o outro lado da avenida e a cabeça divagando: - Os edifícios também vão ficar. O asfalto... E essa vaca...

E quase tropeço nela. Tinha uma vaca no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma vaca. Não estou brincando não!!! Tinha mesmo, aliás, tinha não, tem, pois continua lá. É a “Vaca da praia”, uma escultura realizada em concreto e areia, deitada no calçadão da orla. Interessante a obra. Não entendi o propósito do tema, nem o porquê de uma vaca na praia, mas deve ter uma razão. Certamente tem, tudo tem uma razão, ou tinha antigamente...

Volteei a vaca três vezes - disseram que dá sorte e paguei o mico com fé na vida.

Andante, em busca do meu lugar ao sol ao lado dele, dei de cara com um monte de bundas empinadas na areia de Copacabana.

- Ah! Mas o que é isso? Você nunca viu as “bundas de Copacabana”?

As de verdade sim, estão lá diariamente e muito mais aos finais de semana, mas estas são de areia mesmo, como a vaca. Mulheres esculpidas em areia, deitadas de bruço “bronzeando as costas” e de biquínis. Obra de um certo Mestre Bira. As bundas empinadas além da conta, com os biquínis além da conta... Feias. As verdadeiras bundas de Copacabana são muito mais bonitas e bem cantadas nos versos dele: “A bunda são duas luas gêmeas em rotundo meneio. Anda por si na cadência luminosa, no milagre de ser duas em uma, plenamente” (CDA).

Chamei a minha própria e seguimos pela praia afora: “a bunda se diverte por conta própria” (CDA) – diz o poeta. Fomos rindo, ela e eu.

Muito mais nos rimos ainda quando encontramos o poeta ao lado dela. Não da bunda, mas da vaca. Outra escultura, desta vez em metal.

- Copacabana está cheia de vacas!!!

- Você só notou agora?

Estou ainda para entender o que faz a vaca – além de graça – posta ao lado da escultura de Carlos Drummond de Andrade, lendo.

- Ta lendo um livro dele, claro!

Cheguei pertinho pra ver se o livro era dele mesmo. Nada prova. É só um livro sem título, sem letras. E vacas não sabem ler... Ou não sabiam antigamente...

Disseram que as vacas vieram de São Paulo. Se eu disser que isso parece mesmo coisa de paulista – típico humor paulistano –, vão me acusar de bairrista. Então não falo nada, faz de conta que nem estou mais aqui. Mas que disseram que as vacas vieram de São Paulo, isso disseram.

quinta-feira, setembro 20, 2007

Viu a lua?

Andou muito até chegar ali, sem vontade de chegar, sem lugar para chegar, sem lua. Andou mais do que devia; mais do que podia. Andou a esmo, olhar no nada e nada para ver. Andou sem rumo, sem meta, sem pressa, sem lua.

Mas cansou. Cansou de andar, de olhar e não ver; cansou do martírio diário, da casa, trabalho, salário. Cansou e parou; parou e pensou:

- Táxi!!!

Pneus gritaram em meio aos palavrões. A avenida lotada de seis-e-meias na loucura que leva do nada ao lugar nenhum. Assim o táxi desviou do meio para o canto da pista enfrentando ônibus e buzinas até parar e resgatá-la de seu inferno.

Cezário abriu a porta agilmente com uma das mãos enquanto a outra segurava o volante, pronto para guiá-lo de volta ao caos.

Cléo entrou rapidamente. Ao deslizar do braço do homem protetor à sua frente para fechar a porta, sentiu-se estranhamente confortável dentro daquele veículo desconhecido.

- Vou ligar o ar-condicionado para você.

E, sorrindo, acendeu a luz interna para que Cléo acertasse o encaixe do sinto de segurança.

- Por que ele sorri assim pra mim? - Estranhou.

O carro mergulhou novamente na avenida barulhenta e engarrafada.


- Vou ficar logo depois do túnel. - Informou a passageira.

Como se ignorasse a ordem, Cezário admirou:

- Viu a lua? Está linda!

- Por que ele fala assim comigo? - Pensou a mulher. E respondeu:

- É...

Andou tanto, olhou tanto e não viu nada. Tanto se cansou e não viu a lua.

- Mas não tinha lua até agora há pouco!

E não havia mesmo. Até aquele momento não havia lua, não havia rua, não havia motivo, sorriso, não havia nada.

- Está mesmo linda a lua! - Cedeu Cléo à vida um pouco de atenção. - É cheia?

- Cheia de si! - Garantiu o homem. - É aqui mesmo que você vai ficar?

Olhou pela janela, o destino escolhido tinha chegado. Deveria descer do táxi e seguir sua vida: mais uma noite, mais um dia, outra noite, outro dia. E certamente a lua desapareceria de novo.

Era incapaz de responder àquela pergunta. Não sabia o que dizer. Abaixou a cabeça, calou-se, abriu a bolsa enquanto o carro reduzia a velocidade e ameaçava encostar. Já soavam as buzinas e os pneus.

Cezário parou o carro, acendeu a luz interna e estendeu o braço à frente da mulher para abrir a porta. A mão de Cléo era quente e um pouco suada, mas seu toque no braço do homem, segurando-o firme e delicadamente o fez recuar e a porta permaneceu fechada.

De sua grande bolsa rajada Cléo retirou devagar, meio sem jeito, tímida, uma garrafa de vinho. Acariciou a garrafa como um presente sagrado.

Apagou novamente a luz, apontou a “lua cheia de si” e moveu o carro.

- Daqui pra frente não há mais túneis. - Disse o motorista.

Cléo sorriu aliviada.

sábado, setembro 01, 2007

Você quer casar comigo?

A última vez que sorri você estava ao meu lado. E de lá pra cá eu andava triste, achando que o amor é mesmo aquela disfunção hormonal que não tem nada a ver com empatia, magia ou transcendência. E se o amor é apenas isso, então quem me dirá sobre o romantismo? Esse “ismo” tão démodé.

Minha prima não acha.

Démodé ou não, eu estou sempre esperando um bocado desse “ismo” nos meus envolvimentos, digamos, românticos, e, naturalmente, como quem espera nem sempre alcança, coleciono decepções.

Mas minha prima não.

Casamento também é outra coisa que está absolutamente saindo de moda; hoje em dia ninguém casa, ajunta.

Minha prima ajuntou.

O tempo para se comemorar bodas precisa ser urgentemente alterado sob pena de desaparecer. Estão no fim as comemorações de cinqüenta anos de casados. Imagina! Cinqüenta anos? Never more. Acabou. Bodas de Ouro tem que passar a ser comemorada, no máximo aos quinze anos de união.

Minha prima já comemorou.

Proponho que fique assim, então: Bodas de Prata aos sete anos e meio e Bodas de Ouro aos quinze anos. Convenhamos que nestes tempos pós-pós-modernos, se alguém, depois de quinze anos ao lado de outrem, ainda não tiver desejos de separação, então, pode assumir o “mico” e casar com seu companheiro no melhor estilo démodé moderno, com direito a alianças, arroz nos noivos, latas no carro, lua-de-mel, jogar buquê e tudo o mais.

Minha prima vai casar.

Depois de dezesseis anos ao lado de seu companheiro, com quem tem uma linda menina – hoje moça de quinze anos – recebeu o inusitado pedido. Estão nos proclamas e vai ter festão.

Eu, que nem gosto de festão, vou assim mesmo. Quero celebrar o amor e o romantismo! Mas declino do buquê. Nesta hora, estarei próxima ao bar tomando um trago para refletir sobre os meus quatro casamentos que juntos em tempo não completam bodas de nada – ainda que eu tenha sempre pensado que seriam “para sempre” -, e sobre a possibilidade de assim como muitos solteiros felizes que conheço, seguir sozinha os próximos tempos. Quem sabe completo bodas de “solteirice” e faço um festão ou escrevo um livro aos cem anos de solidão? Nossa, é muito tempo! Cinqüenta, quem sabe, vinte... Dez?

Quem me conhece vai garantir que não consigo ficar dez anos solteira. Talvez tenha razão, é melhor ser mais realista. Ficando longe do buquê da minha prima, vou tentar comemorar bodas sozinha aos seis meses sem par.

Pôxa, eu acredito nessas coisas! Amor, romance e casamento. Veja só, enquanto muitos casais estão se separando aos quinze anos de união, minha prima e seu companheiro vão se casar. Renovam seus votos neste duradouro “amor eterno”.

Vou lá na festa da minha prima dar um grande abraço no amor e pegar de volta o meu sorriso que você levou embora.

quinta-feira, agosto 16, 2007

Eu também quero a minha carta

Faz tempo que eu não consigo pegar uma fila boa no correio, normalmente tão cheio de gente - e quase ninguém em busca de cartas. Tem estado vazia a agência por aqui.

Quando falo em boa fila estou me referindo àquelas em que você passa pelo menos quarenta minutos em pé cruzando e descruzando braços, escolhendo a melhor posição para eles – eu fico testando quanto tempo consigo mantê-los relaxados ao longo do corpo. Do mesmo modo, numa boa fila, tento desvendar a personalidade de meus vizinhos pelo estilo de calçado que usam. Dá até pra ter uma idéia sobre o que cada um faz ali conforme o sapato que está usando.

O boy é o terceiro da fila, mas vai atrasar todo mundo pela quantidade de envelopes que traz na mão. Ainda bem que não tem muita gente hoje. Aquele homem com a muleta está na fila dos preferenciais, mas não consigo entender por que a usa, já que nem mancar, manca. E você, o que está fazendo aí?

- Eu? Eu quero a minha carta.

Do outro lado do balcão, Paulo olha a senhora com espanto.

- Eu quero a minha carta. – Repete.

- Que carta? – Titubeia o funcionário da agência, mas a mulher insiste que quer a “sua carta”.

Tão pouca gente está interessada em carta hoje em dia... Virou coisa tão pouco usual depois do correio eletrônico que fizeram até comunidade no Orkut para troca de correspondência via correio. Certamente aquela senhora não é membro e permanece na frente de Paulo exigindo:

- O senhor pode, porrrr favorrrrr, pegar aí a minha carta.

Paulo olha para os colegas e para os demais na fila, sem saber como agir diante daquela senhora que, inusitadamente, veio ao correio em busca da “sua carta”.

- Como é a sua carta, senhora?

- Se o senhor me entregar a minha carta eu posso lhe dizer como ela é. O senhor pode, porrrr favorrrrr, pegar aí a minha carta. Eu esperei na fila, quero a minha carta.

A fila cresceu. Também, pudera, com o boy e seus envelopes e a senhora e a “sua carta” ocupando os dois funcionários, o pessoal foi chegando. Eu também queria receber uma carta. Uma carta de alguém, sei lá de quem, mas uma carta escrita a mão para mim. Um esforço empreendido em minha direção, um pouco de alguém na tinta de uma caneta bic sobre uma daquelas folhas fininhas dentro de um envelope com as risquinhas brasileiras nas bordas. Ah, como eu queira também a minha carta... Tenho algumas guardadas, de antigamente, quando meus vinte anos não imaginavam o surgimento da Internet. Outros tempos...

- A senhora podia me dizer pelo menos o que está escrito no envelope da “sua carta” ou quem a mandou para a senhora?

- O senhor ainda não entendeu, não é? Eu posso lhe dizer tudinho o que está escrito no envelope da minha carta se o senhor for buscá-la pra mim. Vá, vá, vá buscar a minha carta.

A fila está se impacientando. Está difícil de manter os braços ao longo do corpo, ainda que os envelopes do boy passem rapidamente pela máquina. Todo mundo está percebendo o desconforto do Paulo e ele o desconforto da “platéia”.

- Está bem, a senhora espere aqui um instantinho, que eu vou buscar a sua carta.

A fila quase aplaudiu o Paulo, mas era uma fila tímida e ninguém se manifestou: braços continuaram cruzados e descruzados; os meus ao longo do corpo. Troquei a perna de apoio. A do sapato de plástico fez o mesmo, o franciscano também.

Lá vem ele, sorrindo. Paulo está de volta com a carta. Na ponta dos pés, a senhora levanta as duas mãos por cima do balcão para pegar a “sua carta” e vai embora com o olhar fixo no envelope e uma indescritível expressão de realização e felicidade. Besta que sou - que choro até em propaganda de televisão -, de meus olhos frouxos teimou em rolar uma lágrima.

Tão logo a senhora cruzou a porta de saída da agência, a fila inteira, puxada pelo boy, aplaudiu o Paulo.

- Onde é que você conseguiu a carta, Paulo?

- Ué!!! Aqui não é o correio?

quinta-feira, agosto 09, 2007

Nem tudo o que ping pong

Em meio aos seus devaneios filosóficos de botequim, Beijing dava graças aos deuses do Shan Hai Jing por morar no Brasil, um país com ampla liberdade de... De tudo.

- Ampla liberdade de tudo – pensava Beijing, diante da notícia acerca dos jornalistas detidos em Pequim numa manifestação pacífica do grupo Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que protestava contra os controles governamentais. O Brasil, sim, é um país livre. Pena que seja assim tão... Corrupto.

- De uns anos para cá, inclusive, a corrupção aumentou pra caramba! – Beijing analisava, ao mesmo tempo em que lembrava que esses políticos hoje tão amplamente acusados em público de desvios de verbas, roubo, facilitações para parentes e lá se vão tantas outras acusações, estes que aí estão são os mesmos que sempre estiveram, ou que há muito tempo estão no poder.

- Nossa, mas eles descobriram mesmo o jeitinho de roubar, né? Estão a todo vapor neste objetivo de usurpar o nosso patrimônio. Sim, porque de uns tempos pra cá aumentou muito a corrupção.

- Deixa de ser tonto, Beijing! – Invadia seus pensamentos o vizinho Nanjing, outro chinês feliz no Brasil das grandes liberdades. O que aumentou muito foi a Liberdade de Imprensa. Hoje os jornais investigam e descobrem coisas que nem mesmo o serviço de inteligência mais inteligente seria capaz de descobrir. E noticiam, publicam e todo mundo fica sabendo. É isso. Alguns desses bandidos descobertos são até mesmo processados e condenados – veja só o caso do Juiz Lalau, mais nada.

- Nada?

- Nadica de nada. Processar, tudo bem, mas colocar o cara na cadeia, isso lá é outro papo. Cadeia pra político corrupto não está nos planos desse Brasil da Liberdade em “raios fúlgidos”, mas que pouco brilho tem diante do radiante burburinho da noticiosa cadeia nacional.

- Estou convencido – concluía Beijing – que a corrupção é fruto direto da Liberdade de Imprensa. Fizemos certo em Pequim. Podemos não ter liberdade por lá, mas também não ouvimos falar em corrupção.

- Que besteira é essa que você está dizendo, rapaz?

- É só pensar um pouco. Quem é que ouvia falar em corrupção quando não havia Liberdade de Imprensa? Já pensou se derem liberdade à Imprensa? Haja corrupção!

- Fale baixo, Beijing! – Indignou-se o vizinho. Quer prejudicar as Olimpíadas? Já não bastam tantas águas rolando por lá?

E das profundezas mais cavernosas de sua filosofia mandarim, Beijing justificou seu pensamento:

- Meu velho amigo e vizinho, entre o Pan do Brasil e as Olimpíadas de Pequim só há uma semelhança: é que tanto no país do Cristo Redentor como no Reino das Bicicletas, nem tudo o que ping-pong.

domingo, agosto 05, 2007

Mentiras e Verdades

A partir daí, quando eu via um anão passando na rua, eu pensava: a Mentira tem pernas curtas, será que ali vai a Mentira? E ainda hoje, quando ocorre de esbarrar com algum pequenino, eume repreendo para não relacionar uma à outra coisa.

- Pôxa, mas urge repensar o que é
dito às crianças, afinal de contas. Quanta Mentira lhes contamos para justificar nossa ignorância?

Disseram-me que ninguém morria antes dos noventa anos, quando a pessoa já estaria tão cansada, mas tão cansada que ficaria feliz em descansar, ou seja, em morrer. Não conheço ninguém que tendo chegado aos noventa esteja cansado de viver. Outra cabeluda que me contaram foi que o amor existe e que é sublimado por forças etéreas, mágicas, tênues e francas.

Essa semana mesmo – e somente agora – fiquei ciente de que não é nada disso: o Amor é apenas uma disfunção hormonal.

- Claro! – disse-me a Verdade. - Crianças não se apaixonam loucamente, nem os idosos. Aquelas paixões arrebatadoras as temos na adolescência quando os hormônios estão pandemoniados, ou na menopausa.

Dessa maneira fiquei sabendo, inclusive, que deveria procurar um médico, pois aos 45 anos estava ainda apaixonada loucamente, como na adolescência.

- Deve ser a menopausa – Sentenciou a Verdade.

Mas cá entre nós, a Verdade sabe muito pouco sobre o Amor. A Loucura sabe mais, muito mais.

Foi a ela que perguntei:

- O meu amor não amará mais ninguém? Ele já é velho demais para amar? Por isso ele não me ama? Por isso mente para mim?

A desvairada respondeu:

- A Verdade dói. Se o seu amor mente é porque ama; se ama não é velho.

Fiquei com essa Loucura por algum Tempo, mas logo a Verdade me arrebatou novamente e marcou consulta para acalmar-me os hormônios. Já dizia Bertold Brecht que “a Verdade pensa com tua cabeça”.

- Não com a minha!!! – Gritaria a Loucura.

- Nem com a minha!!! – Também a Mentira.

Então, com a cabeça de quem pensa a Verdade? Cá com meus botões eu tenho pra mim que a Verdade só poderia pensar com a cabeça da Sabedoria - que por sua vez ama o Conhecimento, como eu amo o meu amor.

Tenho pensado em quanto de Sabedoria cabe em cada pessoa. Naquele homem ali passando justamente agora, quanto de Sabedoria cabe nele? No meu amor, quanto de Sabedoria cabe no meu amor? Certamente pouca ou nenhuma, pois quem é que consegue tirar esse meu amor da porta da Loucura e levá-lo à Sabedoria em busca da Verdade?

Meu amor mente porque me ama, diz a Loucura, enquanto a Verdade garante:

- A Mentira só existe se houver um para mentir e outro para ouvir a Mentira, assim como o Amor só existe se houver um para amar e outro para ser amado.

Mentiras ou Verdades ditas aqui, deixo meus pensamentos e fico com o de Voltaire: “A Mentira é um vício quando causa um mal, e é uma grande virtude quando causa o bem”.

domingo, julho 15, 2007

Tão Longe de mim distante

Permaneceu calado, não disse palavra, não respondeu. Talvez não houvesse mesmo uma resposta. Não sei o que dá em mim que sempre procuro respostas... Onde irá meu pensamento? Longe, chamava-se Longe. Mas isso lá é nome de gente? Devia ser, pois era mesmo o nome dele. Testei. Aproveitei que ele estava de costas no meio da rua e gritei:

- Longe!!!

Ele se virou e abriu um sorrisão. Era mesmo Longe do outro lado da rua.

Cantou uma ópera no Municipal e na saída tropeçou em mim. E desde aquele momento eu me pergunto por que não assisti a aquele espetáculo. Era de graça. Sempre tem alguma coisa de graça no Municipal, e é tão lindo lá dentro. Teria visto Longe interpretando Lindoro. No momento em que tropeçamos um no outro eu era La Rosina e lamentei ter parado minhas aulas de canto lírico antes de me tornar a Callas do momento, como a Joyce DiDonato cantando “Una voce poco fa” em Il barbiere di Siviglia.

Mas cada um é o que é e eu vou continuar usando essas letrinhas e fazendo delas o vozeirão capaz de alcançar cada vez mais Longe, ainda que os tropeções me tragam perguntas que nem Longe tenha resposta.

Normalmente quem tropeça sou eu. Sou dessas pessoas que engancham, que caem na rua. A última vez foi ao meio-dia na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Oitenta quilos de mim despencaram do alto de um tamanco pouco antes de entrar num restaurante lotado e recém-inaugurado. Monte de gente na fila e eu de quatro com os joelhos sangrando e minha amiga de setenta anos tentando me ajudar a levantar. Em loja de bibelô e antiguidade eu não entro mais porque derrubo tudo. É prejuízo na certa. Passo Longe.

Seu sorriso era um convite! Mas estava do outro lado da praça, assim tão Longe. Para chegar até ele, o jeito foi dar o primeiro passo. E um depois do outro, fui atravessando a praça e dali mesmo pude ouvir, tão imponente como aquela última ária do Barbeiro cantada em coro, as vaias ao presidente Lula no Maracanã do Pan, habilmente utilizado como a PANacéia do Rio, que está, como já foi divulgado, um PANdemônio, e cuja abertura quase acabou em PANcadaria. O povo do Rio só quis mostrar ao presidente que não é nenhum PANaca. Longe de nós!

Ainda bem que eu estava ali na praça, com olhos ao Longe, fixos no objetivo e caminhando devagar rumo àquele sorriso encantador. Alguém que me conhecesse bem diria que estou mentindo, que certamente fui correndo de um lado até o outro da praça para encontrar quem se chama Longe. Mas eu não sou boba não, sei que “devagar se vai ao Longe”, e é lá que eu quero chegar. Portanto, esse alguém que se me conhecesse diria aquilo, não me conhece ou não compreende que assim como um rio, eu também e você também e ela também, não somos mais quem éramos há um minuto atrás, portanto, ninguém conhece bem ninguém.

O dia em que meu filho deixou de gostar de batatas fritas aos oito anos merecia também uma crônica – e quem sabe acontece -, mas vou lhes dizer como foi que percebi assim a seco que as pessoas mudam assim a seco. Eu preparei para o meu garotinho (ops!, melhor mudar, não quero ofender meu próprio filho), eu preparei para o meu menininho um baita pratão de batatas fritas, que ele adorava, e lhe informei:

- Filho! Vem almoçar que eu fiz batatas fritas.

Ele me olhou sério pela primeira vez aos oito anos e respondeu:

- Mãe, eu detesto batatas fritas.

Comecei a perceber aí que as pessoas mudam e, logo depois, esse mesmo meu filho me corrigiu novamente quanto à sua pessoa quando, depois de muito chamá-lo pelo nome, fui ter com ele no quarto onde brincava e questionei:

- Eu estou lhe chamando, não está me ouvindo?

- Você não está me chamando.

- Como não, estou gritando seu nome há um tempão.

- Não está não. Não me chamo mais Antonio, meu nome agora é Marcelinho.

Aos oito anos de idade me olhava sério novamente e eu tive que chamar o meu pequeno Antonio de Marcelinho por umas duas semanas até que ele resolvesse retornar ao “menu inicial”.

Por isso, fui devagar ao Longe. Um pé depois do outro, um passo, outro, sem pressa, curtindo aquele sorriso que me aguardava do outro lado da praça. Meu Lindoro!

E lá foi La Rosina pela estrada afora devagar até chegar ao Longe, mas “Longe é um lugar que não existe” e se é assim, nem mesmo devagar se chega ao Longe – que não existe.

Do outro lado da praça, sem Lindoro, La Rosina se conformou:

- “Longe das vistas; longe do coração”.

sábado, junho 30, 2007

O Médico e o Monstro

Jogou fora as receitas assim que saiu do consultório. Estava com fome, só podia estar com fome. Não Maria, mas a doutora que a consultara. Não sorria; mal falava. Examinou ouvidos, nariz e garganta e logo sentou para anotar a receita. Maria olhava a médica e via o monstro.

Acordou cedinho, antes do dia raiar e correu para a fila do Posto de Saúde. Tinha que chegar às cinco horas da manhã se quisesse marcar uma consulta com o otorrinolaringologista. Tinha pouca gente e Maria pegou a senha de número sete. Bom, muito bom! Teria sua consulta marcada.

Quinze dias depois, ali estava Maria, desde as nove horas esperando sua vez. Foi a quinta a entregar a ficha à atendente. O patrão tinha cedido a manhã para aquela consulta. Naturalmente, ia lhe descontar o dia, mas não perderia o emprego, afinal, levaria um atestado comprobatório. A doutora chegou às onze.

- Graças a Deus que chegou!

Os velhinhos da fila se animaram quando a atendente informou que, em respeito ao Estatuto do Idoso, estes seriam atendidos antes dos demais. Eram quinze ao todo. Maria foi tomar um café na cantina. Havia tempo de sobra. Catou um pedaço de jornal que encontrou no balcão e leu qualquer coisa a respeito da invasão dos policiais ao Morro do Alemão, no Rio de Janeiro.

- Hunf! – Foi o máximo que conseguiu expressar.

De volta à fila apressou o passo quando viu um lugar vazio. Tarde demais, alguém chegou primeiro. Mas tão rápido quanto sentou, levantou-se novamente. Maria correu e tomou o lugar. Entendeu, então, o motivo de tão rápida desistência de seu antecessor: uma senhora muito pequenina sentada ao lado no banco de pedra da fila de espera fedia muito, mas muito mesmo, tanto que Maria, mesmo com suas narinas fechadas e feridas, conseguia sentir.

Pesou o custo-benefício. Estava cansada depois de duas horas em pé. Preferiu a catinga e passou a ler seu pedaço jornal, tentando não encostar-se à pequena e mal-cheirosa senhora.

- Ainda bem que os idosos vão primeiro! – Pensou. Assim, aquela ao seu lado não se demoraria ali.

Lembrou do metrô de Paris. Não, nunca tinha ido à Paris, mas sua patroa contou que uma vez, na Gare de Saint-Lazare, o metrô chegou com um vagão praticamente vazio, apesar das seis horas da tarde. Todo mundo na estação partiu, então, para ocupar aquele espaço e desfrutar de um pouco mais de conforto. Mas, ao entrarem no vagão, as pessoas tiveram que suportar até a próxima estação o cheiro horroroso de um mendigo e suas sacolas cheias de lixo. Na Estação Liège desceu todo mundo novamente e o vagão seguiu vazio. Certamente, na próxima – Place de Clichy – os tolos tentariam de novo um lugar para sentar no metrô de Paris, às seis da tarde.

- Onde é mais difícil sentar? – Pensou Maria. – No Metrô de Paris às seis da tarde ou a qualquer hora num atendimento de saúde pública no Brasil? - Pouco importava para ela, na verdade, já que nunca iria à Paris e, afinal, já garantira seu assento.

Não demorou mesmo e a velhinha catinguenta foi chamada à consulta. Um alívio para Maria e para os outros ao redor. Um por um, os idosos foram chamados e ela se inquietava no banco. Onze e meia; quinze para meio-dia; meio dia e dez, e nada de chegar a sua vez. Perguntou à atendente quantos faltavam ainda para que ela fosse chamada: Três.

- Pôxa, se eu for rápida, dá tempo de mais um café.

Correu à cantina, mas chegou tarde. O restinho da garrafa térmica estava sendo servido num copo a um freguês. Olhou com tanto desejo para aquele café que o sujeito dono dele virou-se de costas, incomodado com o assédio. Maria se deu conta de si mesma e envergonhou-se. Comeu o bolo de fubá, de cinqüenta centavos o pedaço, a seco mesmo e voltou para a fila.

Foram entrando, uma depois da outra, mais cinco pessoas – Mas não eram três as que faltavam? Desanimava Maria, pensava em ir embora, mas já estava ali há tanto tempo, afinal de contas... Esperaria.

- Maria! – Chamou, finalmente, a atendente.

Entrou e à indicação da doutora, sentou-se na cadeira de exames. Sem uma palavra qualquer, sem um sorriso, um cumprimento, um afago, nada, a médica ia, a cada minuto, se transformando da cura para seu mal na incerteza do próprio mal; do amparo em descaso; da esperança em infortúnio. Maria olhava a médica e via o monstro. Pegou a receita e perguntou:

- O que eu tenho, doutora?

Num tom de extremo mau-humor, rancor e amargura, como se Maria fosse a responsável por suas insatisfações, a médica respondeu:

- Minha senhora, como é que eu posso saber o que a senhora tem antes que me traga esses exames que estão pedidos aí?

- Mas o que a doutora viu nas minhas narinas? Mal consigo respirar de tão fechadas que estão.

- Não vi nada de mais, minha senhora. Já disse que só com os exames. A senhora os faça e traga-os para mim. Próximo!

Maria se levantou muito desanimada. Olhou para as receitas, demoraria mais um mês pelo menos para conseguir o exame pelo SUS e outro para remarcar a consulta.

Uma e meia da tarde.

Jogou fora as receitas assim que saiu do consultório e seguiu para o trabalho ou perderia seu emprego.

- Mas, e o atestado?

domingo, junho 17, 2007

Muito guarnecida!

Fica no meio, não é coisa nem outra, como um filme que não se enquadra: é cinema? Fonema? Metáfora? Nem tanto ao norte, nem a nordeste:

- Que sorte tu me deste! A primeira vez a gente nunca esquece. Padece de saudade.

Agora é tarde, tô frita:

- "Me explica com que pernas vou sair...” Não quero ir.

Não é segredo pra ninguém, mas vou revelar assim mesmo: São Luís (MA) é ilha encantada, de encantados que me guarnecem a todo instante. Sonante, é ilha que canta seu povo que dança. Bem quente. Bacante.

Nos atos deste drama, sorridente, fui eu que guarneci o boi, sou eu a escrava Catirina com todos os seus desejos; fui eu que voei nas asas da matita-pere e desci pelo tronco do Buriti. Tô bem aqui, agora.

E se me leva a vida pela vida afora, como tem que ser, faço desta linha a despedida:

- Guarnicê, tô guarnecida!

sábado, junho 02, 2007

“Poisera” e “Jaera”

A Loba estava aflita e eu ouvia seus latidos perdida no meu mais profundo sono da manhã. O sol já se levantava e eu entreabria os olhos com dificuldade revirando na cama por uns minutinhos a mais entre as cobertas. Mas latia a cadela e cada vez mais alto, cada vez mais aflita, cada vez mais dentro dos meus sonhos:
- Loba! – Gritei.

E pulei da cama atrás do motivo de tanta aflição. Ela estava desesperada, querendo a todo custo entrar na varanda fechada por uma portinhola gradeada de ferro. Da porta da sala, tentei lhe acalmar ao mesmo tempo em que procurava com o olhar o que causava na cadela tanto desespero. Mas não havia nada à vista. Abri a portinhola e deixei que ela mesma me mostrasse a razão de seu alvoroço. Podia ser uma cobra, afinal de contas, ou outro bicho. E era. Ela entrou correndo diretinho no objeto de seu desejo:

- Loba! – Gritei mais alto.


Consegui evitar que ela abocanhasse o pequeno peri
quito azul e branco que arfava num cantinho da varanda, certamente enfartando de medo da predadora. Peguei o passarinho com as mãos. Uma das asinhas quebrada. Deve ter fugido de uma gaiola qualquer e veio parar quase na boca da Loba. Que sina! Ainda bem que nos encontramos, ele e eu, que sempre fui contra pôr os pássaros em gaiolas e fiquei totalmente solidária ao bichinho em fuga. Acalmei a ave, troquei de roupa e fui com ela na loja de animais para comprar comida e algum remédio para a asa quebrada.

Diante da minha intenção de soltar novamente o pássaro depois que tivesse lhe dado a comida e o remédio, o vendedor me alertou que o periquito, por ser um pássaro nascido e criado em cativeiro, não sabe voar, que certamente fora o que se passara naquela manhã, quando, em fuga, tentou voar e acabou sendo abatido por algum predador. Aconteceria novamente se eu o soltasse. Eu teria que manter o pássaro engaiolado para garantir-lhe a sobrevivência.

- Ptz! Pois é, eu que sempre fui contra prender os animais, ainda mais os passarinhos, tão livres que são, fiquei, como se diz, “numa sinuca de bico”, sem saída.

- “Pois é”. Dei-l
he esse nome.

Mas novamente o vendedor – aquele estraga prazeres –, depois de examinar a intimidade do passarinho
, me informou:

- É “Poisera”, fêmea.


Comprei para ela a maior gaiola da loja, esperando diminuir, assim, um pouco da minha angústia de manter o animal enjaulado. Dei-lhe tudo a que tinha direito: banheira, balanço, poleiros de várias formas, casinha, afiador de bico, jiló, enfim... Tudo com o que sonham os periquitinhos. Mesmo assim, a “Poisera” não se sentia feliz. Estava o tempo todo num cantinho da gaiola, não brincava na água, não se balançava no poleiro balançador, nem nada. Certamente, ela queria a sua liberdade, não havia dúvidas. Voltei à loja de animais, com a gaiola em punho, para mais uma consulta com o vendedor.

- Ela precisa de um companheiro. Está se sentindo sozinha.

Caramba! Claro que é isso! Como eu não pensei nisso antes? Mas vou prender mais um passarinho na gaiola?


- Ptz! Agora já era.


“Jaera”. Foi esse o nome que eu dei ao companheiro da “Poisera”, que comprei por alguns reais na loja de animais perto de casa. Levei de volta a gaiolona e o vendedor estava mesmo com a razão: os dois viveram, do jeito deles, felizes para sempre.


“Poisera” tinha uma personalidade muito estranha adquirida talvez depois do trauma
sofrido em sua desastrada tentativa de fuga. Deve ter pensado que, enfim, a liberdade não é para quem quer, mas sim, para quem pode, e ela não podia mais, já que não conseguiria sobreviver em liberdade. Eu olhava para ela e pensava:

- Pra ser livre é preciso saber voar. Acontece isso com as pessoas também, “Poisera”.

Certos dias, em que o trauma vinha-lhe à tona, ela atacava seu manso companheiro e bicava-lhe insistentemente a cabeça como se exigisse dele uma solução para aquela vida prisioneira. “Jaera”, demonstrava generosa compreensão, quando permitia e não revidava, deixando que “Poisera” descarregasse nele toda a sua fúria. Ela não sabia disso, mas ele também não podia fazer nada pela sonhada liberdade. Às vezes, mesmo sabendo que não tinha o direito de interferir, eu abria a portinha da gaiola e tirava o “Jaera” com a mão, acarinhando-lhe a surrada cabeça, até que a brava “Poisera” se acalmasse.

Outras vezes, ela entrava na casinha e ficava ali o dia inteiro, às vezes dois dias. “Jaera” no poleiro esperava pacientemente por sua perturbada companheira.

- Prefiro ela me bicando a cabeça do que enfurnada no quarto deprimida. – Era o que parecia me dizer o periquito.


Eles se acasalavam, eu acho, e ela colocava os ovinhos no ninho, mas não permitia que ninguém chegasse perto e acabava devorando-os antes que nascessem “meus netinhos
”.

Loba também se acostumou a ela e passava pela gaiola totalmente altiva. Devia sentir-se livre diante da prisão dos passarinhos, mas era dona de uma liberdade também limitada não pelas grades de uma gaiola, mas pelo muro de nossa casa.


- O que limita a minha liberdade? Sei eu voar? – Pensei.


Assim foi a vida de “Poisera”. Cada vez que entrava em sua casinha, demorava mais para sair. E todos os dias “Jaera” e eu esperávamos por ela. Desta vez, passou um dia, passaram dois, passaram três e percebi uma tristeza enorme no olhar sublime do jovemJaera”, além das formigas que entravam em fila pela casinha adentro, como abutres.

Pois é: já era! Era, enfim, o fim da história. Eu mesma peguei o corpo da passarinha e
enterrei no jardim, numa cerimônia solene, acompanhada pela gaiolona do “Jaera” e pela cadela Loba, que também estava ao meu lado, alguns dias depois, quando entreguei o periquito e sua “mansão” para que fossem levados a viver no sítio de um amigo.

segunda-feira, maio 14, 2007

Mas não se mata cavalo?

A chuva amanheceu cobrindo o mar. Um dia daqueles pra se fazer poesias sozinha numa casa na beira do mar. Acordei cedo e tomei esta decisão. Faria poesias... Mas antes, como todo poeta pela manhã, fui ao banheiro para os primeiros “versos fisiológicos”. Meditando sobre as verdades eternas, o olhar vagando solto pelo lavatório à frente, o mosaico de cerâmica quebrada acima dele, a parede descascada, o piso vitrificado, o tapete felpudo vermelho – uma delícia para pisar com os pés descalços – e, ao lado dele, a aranha caranguejeira.

- Aranha caranguejeira?

Preta, peluda, quase do tamanho da palma de uma mão. Paralisadas as duas, olho no olho, a aranha e eu buscávamos uma solução imediata e segura para fugirmos uma da outra.

Vasculhei o banheiro com o olhar, enquanto mandava mensagens ao meu cérebro para concluir suas ações fisiológicas o mais rapidamente possível, sob o risco de termos que abortar a missão matinal, o que traria transtornos pelo resto daquele dia de poesias. Não foi fácil! Qualquer coisa que ia saindo de mim teimava em retornar rapidamente ao lugar de onde veio, causando extremo desconforto.

Durante esse inconveniente e nada prazeroso vai-e-vem eu pensava em como me defender da “monstra” que aniquilava minha dignidade daquela maneira e me atordoava mais do que as contas para pagar.

Procurei um pedaço de pau, uma vassoura, qualquer coisa que eu pudesse usar como arma, mas o mais parecido com isso era o limpador de privadas. Como eu poderia matar a aranha com um limpador de privadas? Cheguei a pegá-lo para tacar na aranha, mas o espelho me denunciou sentada na privada com o limpador de vasos numa das mãos em posição de lançamento. Era ridículo demais até para alguém tão sozinho quanto eu naquela casa à beira-mar.

Ela continuava na soleira da porta olhando para mim, mas àquela altura do campeonato, a aranha já me destinava um olhar de desdém, quase de pena por alguém preso ao vaso sanitário por um cocô medroso. Abominei aquele olhar e tomei a decisão que salvaria o pouco da dignidade que me restava. Alcancei o tapete felpudo vermelho e o joguei em cima da aranha. Ela ficou imóvel ali embaixo.

- Será que está morta?

Como se aproveitasse o momento de trégua, o cérebro de mim ordenou veementemente a conclusão e, num só movimento peristáltico, o corpo expulsou de si os restos de mim.

- Ouff!

O barulho da descarga fê-la tremer, mas permaneceu imóvel e mais do que depressa saí do banheiro, corri até a cozinha, me armei com a vassoura de piaçaba e retornei ao campo de batalhas. O aracnídeo estava prestes a ganhar uma vassourada quando pensei:

- Ela é importante para o equilíbrio ecológico - todo nós somos. Não posso matá-la.

Como me livrar da aranha sem matá-la? E a minha vingança pelo constrangimento que passei na privada? E as contas para pagar? Ela não tem culpa das contas. Ou tem?

Tentou fugir. Aproveitando minha dúvida e devaneio, a aranha tentou sair por um cantinho do tapete, mas a impedi com a vassoura. E se ela fosse para o meu quarto? E se eu a encontrasse à noite entre meus lençóis brancos de cambraia bordada?

Mas não vou matá-la, de qualquer maneira! Pelo bem ou pelo mal, segurei meus instintos assassinos e fui empurrando a aranha embaixo do tapete até a porta da sala, onde pretendia expulsá-la para o jardim. Ao pé da porta desconfiei. O tapete não se mexia mais. Estaria ela novamente se fingindo de morta? Esperta essa aranhinha! Ou será que preparava um bote? Aranhas dão bote?

Só retirando o pano para saber, mas cadê a coragem? Ela era enorme! E lá estava eu, mais uma vez superando meus medos em busca da sobrevivência. Com a pontinha da vassoura levantei o tapete e verifiquei que a minha inimiga estava toda enroladinha em si própria e com uma das pernas quebradas...

- Oh, não! - Fiquei com pena - O que eu havia feito? Havia machucado o bicho que apenas tinha errado o caminho e, perdida, encontrava-se na porta do banheiro da minha casa. Perdeu a perna e o rumo de sua existência. E eu? O que eu faria agora?

Tentei continuar a minha missão de colocá-la para fora e deixar a natureza cuidar de seu destino, mas com o empurrão que lhe dei, acabei arrancando outras duas patinhas. Não tinha mais jeito: Com uma vassourada certeira, acabei com a vida da aranha.

- Ué? Mas não se mata cavalo?

segunda-feira, maio 07, 2007

Ainda que toque em mim a alma de uma mulher...

Minha filha canta e vive: é mulher como eu.

Viverá para o mundo e só morrerá por ele. Minha filha cantará os sonhos, todos os sonhos de uma mulher e viverá todas as suas mágoas... E as minhas que com certeza debulharei sem perceber nos campos que só a ela pertencerão. Choraremos, nos separaremos um dia, para nos perceber de volta ao caminho de tijolos amarelos, buscando um coração para o homem de lata, a coragem para o leão, uma alma para o espantalho e o nosso caminho de volta.

Nos veremos, muitas vezes como rivais, medindo forças em nome do nosso amor.

Ah, minha menina... Sinto tanto medo! Preciso salvar você, mantê-la viva para entregá-la ao mundo que sem a menor cerimônia vai invadir sua alma e tentar corrompê-la.

Quanto arrependimento! Agora que vejo você, dormindo, indefesa... Que culpa louca é essa? Que força poderosa nos impele a procriar e não nos arma de coragem? É preciso ter coragem.

Não basta só ter uma filha, é preciso revolucionar junto, é preciso dar-lhe a vida.

Quantas são as mães que somente parem e entregam seus bebês cruelmente à selvageria? Espere! Do que estou falando? O que sei eu do que sofrem estas mães? Preciso salvar minha filha e todas as filhas do mundo para que possamos continuar gerando a maior revolução que é dar à luz mais um ser.

(Texto extraído de "Ainda que Toque" - peça de teatro de minha autoria, montada pelo grupo "Anas, Ias e Dias", em 1994, no Teatro Municipal de Araruama)

terça-feira, abril 24, 2007

Celas: você vai gostar!

“Um dia ele me disse que eu deveria entendê-lo como homem... Os senhores sabem o que isso quer dizer? Entendê-lo como homem? Os senhores sabem sim”.
De sexta a domingo, no Teatro Municipal de Araruama, às oito da noite. Ingressos a R$ 10,00. Estudantes e pessoas com 60 anos ou mais pagam meia.

Todos os domingos, às 19h, exibição do documentário "Verdade de Mulher", de Maria Luiza Aboim. Até dez para às sete da noite, ingressos a R$ 5,00 com direito ao filme e à peça.

Celas, com Milena Lizzi

Texto e músicas: Morgana Pessôa

Direção: Angelah Dantas

Arranjos e execução musical: Vitor Bricio

Figurino: Suzana Riisa

Maquiagem: Fabrício Santos

Iluminação: Pablo Rodrigues

Produção executiva: Érica Lobão

Programação Visual: Júlia Pessôa

Realização: Editora Cartaz Cartolina e Prefeitura Municipal de Araruama

terça-feira, abril 17, 2007

SerTão ou não ser tão...?

Depois de tantos anos por aqui, já não me surpreendo mais com o que é possível ao Ser Humano, ou ainda, com o que é possível vir do Homem. Estou bem acostumada com seu descontrole, com sua urgência, com seu medo, com seus devaneios, com sua razão, enfim, com tudo o que faz dele um destruidor de si próprio.

Mas “todo o resto”, afora o Homem, surpreende. E “todo o resto” afora o Homem é a natureza, ainda que seja, ele mesmo, parte dela.

Aqui, eles eram quatro, como os quatro amigos da história infantil, todos de rua. Uma matilha que escolheu a nossa casa como pouso seguro. Dávamos água – a vizinha dava comida - e, como nossa casa não tinha muros ou cercas, eles iam e vinham em total liberdade. Vida boa!!! Comida farta, água, carinho, amigos, liberdade, proteção, cuidado. Querer mais o quê? Um cachorro não quer mais nada!

Certo dia uma desapareceu. Passou dias sem vir em casa. Desconfiamos que algo podia não estar bem. Havia um silêncio solene entre os demais que me incomodava. Andei pela vila a sua procura, mas em vão. Inconformada, perguntei à outra:

- Você sabe onde ela está? Leve-me até ela.

Inexplicavelmente, a cadela saiu andando, voltando-se vez por outra para me olhar. Entendi seu chamado e sem pensar em nada a segui. Chegamos perto do campinho de futebol, a umas duas quadras da casa. Nesse local, a cadela andou em voltas de um montinho de terra, cheirou e, por fim, deitou-se ali e olhou para mim. Me aproximei devagar e juntei-me a ela, coloquei sua cabeça no meu colo e nos consolamos pela morte de nossa companheira.

Mas a vida leva e traz.

Um ano mais tarde, encontrei, no dia do meu aniversário, uma pequenina cadela, cor de caramelo, com os olhos envoltos num cordão negro, muito simpática, linda! Olhou pra mim daquela forma irreparavelmente apaixonante e caímos de amores uma pela outra. Levei pra casa e a apresentei para a matilha.

Os dois mais jovens: o cachorro, rei absoluto, e a cadela que encontrou o túmulo da outra, não aceitaram a nova cria muito bem e por vezes quase lhe arrancaram as tripas. Mas a mais velha, a qual chamávamos mesmo de “Velhinha”, esta, mais experiente, mais sábia, acolheu a pequena, protegendo-a.

Como os outros não permitissem que a cadelinha se aproximasse da comida, a Velhinha, do alto de sua sabedoria, para evitar que o filhote morresse de fome, e talvez no instinto de garantir, assim, a continuidade da existência de sua espécie, abocanhava um bocado da comida, mastigava-a e, pertinho do bebê, depositava ali aquela massa pronta para ser bem digerida pelo pequeno organismo de sua protegida. A Gala, hoje, é uma linda cadela que, bastante jovem ainda, garante a segurança da matilha, atualmente formada por velhos cachorros.

Mesmo a nossa mais anciã sabedoria não tem chegado aos pés do que essa velha cadela sabe sobre a vida. Conviver com a natureza e poder perceber essas sutilezas é um grande privilégio. Mas não deveria ser, não é?

Daqui onde estou, meu olhar atravessa a porta de vidro em frente à mesa de escrever, passa pelos cachorros descansados na varanda e vai encontrar as montanhas que guardam ainda um bocado da Mata Atlântica carioca – 93% dela no Brasil já foi “deletada” do mapa.

Estive lá, certa vez, levada por uma mulher encantada de longos cabelos e sonhos. Um lugar chamado SerTão. Fomos sós, as duas, ela já com seus bem-estados 62 anos, guiando seu jipe 4X4 e eu, de posse apenas de mim mesma e uma muda de roupa. Minimalismo.
Encravada no meio da floresta, depois de três quilômetros por subidas em verdadeiros degraus de pedras por onde só aquele cavalo de quatro rodas poderia subir, uma pequena cabana nos abrigou por três dias, nos quais nos enfiamos floresta adentro buscando talvez as respostas que, estando apenas dentro de nós mesmas, somente em estado de integração total poderíamos encontrá-las.

Ali, sem energia elétrica ou qualquer outra modernidade, ouvindo o bater das asas de enormes e ainda desconhecidos pássaros e o chincalhar dos macacos na mata, cada instante nos surpreendia a natureza, mas em nada me surpreendeu quando minha maga anfitriã me alertou para um barulho diferente no meio da floresta, que, mesmo parecendo estar tão perto de nós, devia distar pelo menos um quilômetro da clareira da cabana. Era um caçador de macacos. Um homem que invadia aquele santuário ecológico para destruir mais um pedaço de sua própria vida. O estampido da espingarda nos cala ao mesmo tempo em que alvoroça toda a floresta. Nos olhamos nos olhos minha amiga e eu. E as respostas que buscávamos continuaram lá dentro de nós mesmas.

segunda-feira, abril 09, 2007

Uma noite no deserto

Voltando pra casa neste último feriado de Semana Santa, sentada à janela do “mil-e-um” rumo a Saquarema, vim acompanhando, no contra-fluxo engarrafado dos que retornavam para a cidade do Rio de Janeiro, além das inúmeras imprudências dos mais apressados, as queimadas ao longo da Rodovia Amaral Peixoto. À parte os problemas ambientais causados por elas, à noite, o fogo é sempre muito atrativo.

A última vez que estive diante de uma fogueira foi na África, no Deserto do Saara, na Tunísia, guiada por um beduíno que animou a noite com sua flauta de três notas entoadas em dó.

Estávamos num passeio de férias, meu marido e eu e, passando por Douz às vésperas de seu aniversário, vimos a placa numa agência de turismo: “Uma noite no deserto”. Uau! Era um presente bárbaro, uma experiência inusitada e muito especial. Anunciava que estaríamos acompanhados por beduínos (nômades do deserto) e que passaríamos a noite em tendas e comeríamos uma deliciosa refeição genuinamente beduína. Imaginei logo aqueles acampamentos de filmes, com montes de camelos, cavalos, muita gente, dançarinas, música árabe, véus, enfim... Sabe tudo aquilo que a gente romanceia e imagina? Romanceei e imaginei.

Contratamos o passeio e nos preparamos. Muitas roupas para o frio da noite, uma garrafa de vinho e outra meia de uísque. Um sorriso meio bobo de crianças travessas e lá fomos nós dois para a nossa aventura. Deixamos o hotelzinho três estrelas no meio do oásis e, a caminho da agência onde pegaríamos o transporte até a “porta” do deserto, meu marido me recomendou que usasse o véu na cabeça por segurança – mulher sem o véu, ainda que turista, não é muito respeitada eno meio de um monte de beduínos, sabe-se lá o que poderia acontecer. Achei uma maravilha, estava mesmo querendo experimentar os véus que eu havia comprado de lembrança. Qual mulher já não se enrolou num véu à frente do espelho? Escolhi um bem bonito, em tons de vermelho.

- Que venham os beduínos aos montes! - Pensei, mas não disse palavra.

Na “porta” do deserto, o beduíno nos esperava com dois dromedários, cada um com mais de dois metros de altura. Quase desisti quando cheguei perto dos bichinhos, mas olhei para meu marido todo animado, no dia do seu aniversário, já se trepando em cima do animal marrom e não tive outra opção a não ser a de buscar meu assento no branco posto de joelhos por nosso guia. Tentei subir uma vez, duas e nada da minha perna alcançar o outro lado da “cela”. Meu marido já em cima da dele me incentivava:

- Vamos, querida! É bem alto aqui em cima...

Eu lhe sorri aquele sorrisinho às vésperas do desespero. Respirei fundo e... Pimba! Lá estava eu em cima do dromedário que subia rapidamente sem nem dar tempo de me ajeitar da sua cacunda.

- Ai, meu Deus, vou cair! – Pensei, mas não disse palavra.

Lá em cima, abri um sorriso. Com as pernas arreganhadas e a corcova no meio delas pelos joelhos, eu era, digamos assim, a deselegância em pessoa, ainda que com meu bonito véu a essas alturas todo desajeitado na cabeça e preso por uma toca.

Resolvi tirar uma foto lá do alto. Com uma das mãos segurando meu corpo em cima do “Ugh” – era assim que o beduíno chamava os camelos - e a outra tentando manejar a máquina digital, tirei algumas fotos meio tortas a caminho do “grand désert”.

Uma hora depois, com as coxas e virilhas assadas e meio mareados pelo bamboleio dos animais, estávamos no local da prometida “Uma Noite no Deserto”. Mas nada de outros animais além de “Ugh” e “Ugh”; nada de outras pessoas além de meu marido, do beduíno e de mim mesma; nada de tendas além da barraquinha de dois lugares que o homem nos entregou para que montássemos; nada de nada, muito menos de dançarinas: éramos mesmo só nos três e os dromedários.

Chegamos no final da tarde e o pôr-do-sol só não foi mais bonito do que a aurora do dia seguinte. Mas a noite caía rápido e o frio aumentava. Colocamos mais casacos, luvas, tocas e sentamos em volta do fogo aceso pelo beduíno que, com as mesmas mãos que guiou os dromedários começava a preparar a “genuína refeição”. Numa tigela amassava farinha de trigo e água e uma panela posta em cima do fogo fervia uma sopa de três pedaços de carne de carneiro, uma batata e uma cenoura, temperados com alguma erva e harissa (condimento apimentado à base de páprica e tomates).

Abriu a massa em disco, afastou as chamas, as brasas e um bocado da areia e a repousou ali mesmo, recolocando em cima dela a areia e novamente as brasas. Ao som das três notas entoadas em dó e bebendo o vinho, aguardamos famintos aquele pão e aquela sopa. O fogo dançava ao som da música e eu o observava feliz. Quem precisava de dançarinas, afinal de contas? Olhava para meu marido e achava até demais a presença do beduíno.

- Da próxima vez viremos sozinhos nós dois. – Sentenciei.

O frio aumentava noite adentro e fomos para a barraca, meu marido e eu, ainda com um pouco do uísque que dividimos um com o outro – o beduíno não bebe – e até que estávamos suportando bem o frio de menos dez graus. Mas naquela noite, depois de passar o efeito do uísque e do vinho, eu, que nunca me levando para ir ao banheiro no meio da madrugada, procurei uma moitinha no meio do areal por nada menos que sete vezes. Um frio de rachar a alma. Lá pelas tantas, quase menos quinze graus e meu marido, que me pedia a todo instante para chegar mais perto dele, declarou:

- Querida, acho que não vou sobreviver!

Enquanto sofríamos dentro da barraca com seis cobertores e um aquecendo o outro, o beduíno enrolado numa mantinha fina, dormia plácido ao relento, parecendo não se importar com o frio, perfeitamente integrado ao ambiente daquela enorme praia sem mar.

Pela manhã, depois da bela alvorada e de outro pão assado nas areias do Deserto do Saara, subimos nos “Ughs” e seguimos de volta para o agradável hotelzinho onde, depois de tomar banho, nos acomodamos na confortável cama e dormimos aquecidos.

Mais alguns campos queimados na beira da Rodovia Amaral Peixoto; mais alguns imprudentes cortando a frente do “mil-e-um” e estava eu de volta à minha casa na “porta” do Oceano Atlântico. Uma tempestade que se aproximava vinda do mar me deixou sem luz por parte da noite e, ali no escuro, apenas com a luz fraquinha da brasa de uma haste de incenso no meio do jardim de inverno, me pareceu ouvir, ainda que longe, o som das três notas entoadas pela flauta em dó do beduíno.

Nota: "mil-e-um" = viação de ônibus que serve à Região dos Lagos - RJ - Brasil.