sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Bloco de nós

- Tá ouvindo?
- O quê?
- É o bloco.
- Hã, sim, é. Pensei que você estava falando da cadeira rangendo.
- Eu falava do bloco mesmo.
- O bloco tá passando.
- E a cadeira, rangendo.
- Mas o que é que você está querendo com essa conversa toda?
- Ouff!!
- Você tá assoprando de novo.
- Ouff!!
- Por que é você assopra tanto?
- Essa cadeira, precisa colocar óleo, não pára de ranger.
- Não é a cadeira que te incomoda, é o bloco.
- O bloco tá passando lá fora.
- E é isso o que te incomoda, não a cadeira.
- Essa cadeira range o tempo todo, o tempo todo, o tempo todo.
- E você nunca reclamou dela.
- Ouff!!
- E tá assoprando de novo.
- Escuta, eles estão tocando “Bandeira branca...”
- Eu gostava de dançar no salão.
- “Bandeira branca, amor...!”
- Você preferia a rua.
- Você não.
- Onde você vai?
- Vou comprar cigarros.
- Você não fuma.
- Ouff!!
- Fica aí. Daqui a pouco passa.
- O bloco?
- Sua vontade de fumar.
- Ouff!!
- Se continuar assoprando vai acabar sem ar.
- O que você está cozendo?
- É a fantasia.
- Há anos que você está cozendo esta fantasia.
- Algum problema?
- O bloco...
- O que é que tem o bloco?
- Passou.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

O que somos nós?

Há vários anos, quatro moças que dividiam um conjugado no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, viram-se, em menos de meia hora, agarradas a uma mangueira de borracha, dessas que servem para molhar jardim, do lado de fora do décimo andar do edifício onde moravam. Foram caindo uma a uma, tudo transmitido ao vivo pela TV.

Tal qual em onze de setembro de 2001, nesse dia – do qual já são passados tantos anos - eu atravessava a sala da televisão rumo a outro cômodo, quando me percebi diminuindo o ritmo do caminhar, e não desgrudei mais os olhos da TV até que tudo se tornasse tão banal aos olhos da mídia que ninguém mais desse atenção ao fato. Um bandido, fugindo de uma tentativa de assalto ao edifício onde moravam as moças, havia ateado fogo no corredor do prédio, bem na frente da porta da casa delas. Os conjugados no Rio não têm porta de serviço, apenas uma entrada e elas não podiam sair por lá, devido ao fogo e a fumaça que já invadiam o pequeno apartamento de um só cômodo. A única saída foi a janela. A polícia e os bombeiros foram chamados e formou-se o fuzuê em frente ao prédio. Formaram uma arena e colocaram colchões, cama elástica, cobertores, mas era o décimo andar. Esperavam a escada magirus, mas não chegou a tempo. A Rua Senador Vergueiro é um corredor estreito, entre os populosos bairros de Botafogo e do Flamengo. Por lá passam muitos ônibus. A escada ficou presa no engarrafamento.

Num ato de desespero e esperança, alguém subiu ao terraço do edifício e jogou de lá a mangueira. Elas, que já estavam no parapeito da janela acuadas pelo fogo, viram naquela borracha a derradeira possibilidade e se agarraram a ela como se agarra a própria vida.

Foram caindo uma depois da outra, restando só a última. Sozinha na mangueira ela ainda resistiu uns quinze minutos, tentando quebrar a janela do nono andar com os pés descalços balançando a mangueira com o corpo em direção à vidraça, mas foi em vão. Todos gritavam e torciam para que ela conseguisse, mas, ao vivo para todo o Brasil, a moça perdeu as forças nos braços e foi escorregando pela mangueira atéa largar a pontinha e despencar como suas amigas. A comoção foi geral e o terror absoluto.

Detido, o bandido se limitou a dizer que não podia imaginar que havia pessoas no apartamento. Será que ele pensou que o edifício que ele assaltava era um prédio fantasma?

Nada havia me destruído mais do que ver aquelas moças caindo uma a uma e se espatifando na arena formada por curiosos e jornalistas, proporcionando um espetáculo de terror. Nada, até saber do menino aos pedaços pelo subúrbio carioca.
Se tivessem sobrevivido, as moças hoje teriam a idade da mãe do João Hélio.
Tenho vergonha de olhar nos olhos das crianças. Porque essa responsabilidade,ao contrário do que se pensa, é nossa.