sexta-feira, março 28, 2008

Raciocínio Lógico

Acordei. Se acordei, não morri. Se não morri, tenho que olhar minha agenda. Se olhar minha agenda, verei os compromissos. Se vir os compromissos, terei que cumpri-los. Se os cumprir, vou ter um dia cheio. Se tiver um dia cheio, não vou à praia. Se não for à praia, morro. Se morrer, não acordarei.

Fui à praia. Se fui à praia é porque não morri. Se não morri, acordei. Se acordei, abri os olhos. Se os olhos estão abertos, estou vendo a bagunça desse quarto. Se estou vendo isso, vou arrumar. Se arrumar, vou perder a manhã toda. Se perder a manhã toda, só vou à praia à tarde. Se eu for à praia à tarde, não cumprirei os compromissos. Se não cumprir os compromissos, serei demitido. Se for demitido, morro. Se morrer, não vou à praia.

Cumpri os compromissos. Se cumpri os compromissos, não fui demitido. Se não fui demitido, não morri. Se não morri, acordei. Se acordei, tomei café. Se tomei café, o estômago doeu. Se o estômago doeu, tenho que ir ao médico. Se for ao médico, tomarei remédios. Se tomar remédios, não beberei. Se não beber, não vou à chopada dos colegas da repartição. Se não for à chopada dos colegas da repartição, morro. Se morrer, não cumprirei os compromissos.

Bebi. Se bebi, fui à chopada dos colegas da repartição. Se fui à chopada dos colegas da repartição, não morri, Se não morri, acordei. Se acordei, olhei o relógio. Se olhei o relógio, vi que estou atrasado. Se estou atrasado, faço tudo correndo. Se faço tudo correndo, nem tomo banho. Se não tomei banho, estou fedendo. Se estou fedendo, Lucinha vai perceber. Se Lucinha perceber, nem vai olhar pra mim. Se Lucinha não olhar pra mim, estou frito. Se estiver frito, estou morto. Se estou morto, não bebo.

Tomei banho. Se tomei banho, não estou fedendo. Se não estou fedendo, Lucinha nem vai perceber do mesmo jeito. Se Lucinha não perceber, estou frito do mesmo jeito. Se do mesmo jeito estou frito, do mesmo jeito estou morto. Se estou morto, não acordei.

Mas acordei. Então é melhor virar pro lado e dormir de novo, que hoje nem vai dar praia.

Uma pequena homenagem a todos os quatorze mil e tantos colegas que, assim como eu, estudaram, entre outras coisas, Raciocínio Lógico para a prova deste fim-de-semana, em Brasília, por uma das cem vagas no Itamaraty. Boa sorte a todos nós!

sábado, março 08, 2008

Se eu não me chamasse Morgana


- Morgana! Morgana!

Acho que tem alguém me chamando no portão. Detesto que gritem meu nome no portão! Só por isso não vou acordar agora, nem vou me levantar agora...

- Morgana! Morgana!


... E também não vou mais me chamar Morgana.


Com os olhos colados e o travesseiro na cabeça, tontinha de sono, pensei: - Se eu não me chamasse Morgana? Se a roleta tivesse parado em outra casa e eu hoje tivesse outro nome? Teria a mesma personalidade? Seria eu desse jeitinho assim? Poderia me chamar Rosa, por exemplo.


Exalaria o perfume das flores se me chamasse Rosa? Esmeralda, certamente, não me chamaria, pois comum como sou, não tenho aquele brilho das preciosas. Também não me chamaria Graça – sou meio sem graça... (Nota-se, né? Ô trocadilho medonho!!!)


Lígia não me chamaria, nem ao piano do Tom, que, afinal, nunca sonhou comigo. Ana deixaria Amsterdã se fosse meu nome, e, apesar dos olhos tristes, também não me chamaria Carolina, nem carregando a dor de todo o mundo, nem a de Assis.


Não me chamaria Matilde sem poder amar Neruda; Isolda sem Tristão ou Julieta sem Romeu. De nada adiantaria chamar-me Raimunda ou Sebastiana... Maria de Alguma Coisa eu poderia me chamar, mas não sou de nada.


Quem seria eu se não fosse assim tão Morgana? A amada imortal de Beethoven?


Ah! Se eu tivesse as cores de Kahlo, mas quem gostaria de passar “Frida” por esta vida? Marquesa todas gostariam, mas alguém aí lembra o primeiro nome da de Santos?


Não gostaria de ser Helena e pôr em risco a cidade toda, e de forma alguma seria Salomé, nem pela cabeça do João. Também não seria Olga, apesar do orgulho que sinto. Mas poderia ser a “quase tudo” Clarisse, desde que nem tão “Perto do coração selvagem”.


É difícil saber! É difícil encontrar para nós mesmos a razão e o caminho de sermos o outro, ainda que nossa existência dependa do outro. Existiria eu sem você, leitor?


Um nome. Quando criança queria ser “Cláudia” como minhas amigas. Todas as minhas amigas se chamavam Cláudia, aliás, naquela época me parecia que todas as meninas do mundo se chamavam “Cláudia”, menos eu, e isso, naturalmente, se transformou em mais uma daquelas crises de personalidade adolescente.


- Por que você não me colocou o nome de Cláudia, mamãe!!! Tinha que colocar esse nome diferente em mim? Morro de vergonha na hora da chamada na escola. Todo mundo é “Cláudia” e só eu sou “morgana”!


Coitadinha da minha mãe!


Se nem sei que nome eu mesma me daria, como supus ser capaz de nomear meus filhos? Não os batizei em nenhuma religião, deixando para eles próprios a escolha ou não de um caminho religioso. Da mesma forma poderia tê-los deixado sem nome, para que escolhessem? A minha filha por pouco não se chamou Clara Adelaide, e até hoje ela agradece ao pai pelo nome que tem.


Quase desisti! Mas o sono estava indo embora a galopes e eu não queria acordar Morgana, de jeito nenhum. Queria um novo nome: Ana, Andréa, Aparecida? Berta, Berenice, Bernadete? Célia, Celina, Cristina? Denise, Diana, Débora? Elsa, Elisa, Eliane? Fátima, Fiusa, Fernanda? Geralda, Gilda, Guiomar? Hilda, Holoísa, Helena? Isa, Isolda, Ivete? Júlia, Juliete, Juliana? Kátia, Karine, Korina? Liliam, Leila, Liliane? Márcia, Mônica, Madalena... Ufa!


Madalena!
“O meu peito percebeu que o mar é uma gota”.

Abri os olhos e joguei de lado as cobertas, construindo a personalidade daquele nome. Agora que sou Madalena, preciso ser bastante “Madalena”. A minha Madalena não foi apedrejada por fanáticos, mas quem sabe ainda viveria outro “Romance no Deserto”, afinal, “até a lua arrisca um palpite de que nosso amor existe, forte ou fraco, alegre ou triste”.


Pronto, eu estava bem contente e ia ser Madalena por uns tempos. Levantei, e já caminhava para a sala quando ouvi aquela voz mansinha de menina:


- Mãe, tem uma pessoa te chamando no portão!


Acabaram-se as dúvidas, olhando aquela criaturinha que me chama “mãe”. Fosse quem eu fosse, mesmo que me chamassem “´Mesa”, “Papel” ou “Maçã”, ali estava o eu mais humano, mais real, mais sensível. O eu mãe, o eu mulher.


8 de março.

(
A coluna partida- 1944- Óleo sobre tela, de Frida Kahlo)