domingo, agosto 31, 2008

Minhas e de mais ninguém


Albergine sempre teve muita facilidade para envelhecer. Desde muito jovem, a cada vez que piscava o olho, envelhecia. Por isso, presta sempre atenção nos seus próprios passos, pois sabe que, invariavelmente, a levarão por uma estrada sem volta. Cada passo deve ser bem passado. Bem passado mesmo, como bife, nada de bem pensar nada, não dá tempo. Se pensar, olha Albergine envelhecendo de novo.

Logo ela, que não gosta de espelhos, não precisava deles para perceber que envelhecia a toda hora.

A primeira vez que percebeu que envelhecia foi quando viu nascer sua irmãzinha, dois anos mais nova que ela. Albergine notou que havia uma diferença entre o novo bebê e o velho bebê - ela. Uma diferença que as pessoas faziam questão de deixar bem clara:

- Albergine, não sufoque sua irmãzinha com o travesseiro. Não faça isso, querida, você já é uma mocinha.

A partir desse dia, em que percebeu que envelhecia, a pequena Albergine passou a vigiar o envelhecimento dos outros também, a começar por aquela monstruosa criaturinha no berço. Pelo menos duas vezes por dia, ela ia lá ver se o bebê já “era uma mocinha” também. Mas nada, não notava diferença nenhuma nele, ao contrário dela, que envelhecia.

Ela não sabe, mas perceber assim tão novinha que envelhecia foi sua grande sorte. Desde então, Albergine vive assim, vivendo. Não quer saber de outra coisa, a não ser viver. Tem feito tudo o que consegue e que lhe dá prazer.

Sua irmã, bebê, não tem pressa de sair do berço:

- Deixa pra depois.

Albergine não deixava nada pra depois. Agora ou nunca, esse era o leme de seu veleiro. Um veleiro que leva Albergine a navegar por dias e dias como ondas num mar ventoso.

Ainda hoje veleja, veleja, veleja, mas, por mais que insista em viver, viver, viver, Albergine não consegue deixar de envelhecer.

- Olhem! Minhas mãos, o que são essas ranhuras? – Perguntava-se, olhando para o berço onde, ali mesmo, como numa canoa, o monstro teimava em permanecer.

À sua volta, ninguém caía em desuso. Aqueles tios e tias enormes de sua infância, todos ficaram ali mesmo como estavam, olhando para ela que passava por eles envelhecendo sem parar. Esses dias mesmo, Albergine, com seu capacete branco, me procurou e, espantada, me questionou:

- Onde estão elas?

Estranhei a pergunta e fiz aquela cara que a gente faz quando não entende, arregalando os olhos e puxando os cantinhos da boca pra baixo.

- Não faz careta, que eu quero saber onde elas estão.

Entendi menos ainda e Albergine chegou bem pertinho de mim.

- Você é muito mais velha que eu, sempre foi, mas aí está você sem carquilhas, enquanto eu sou um mar de engelhas e pregas, uma casca de ovo quebradiça, uma noz.

Eu nunca tinha reparado, mas olhando para Albergine vi que seu rosto já bastante engelhado, ganhava uma ruga a mais a cada momento e outras duas cada vez que ela caçava rugas em mim. Enquanto eu, ao contrário, perdia as minhas rugas para ela nesses olhares caçadores.

- Por favor, Albergine, deixe-me as minhas rugas!

Foi então que a mulher entendeu que havia tomado para si a velhice do mundo. Todos ao seu redor permaneciam jovens enquanto ela envelhecia.

Resolveu que atracaria seu veleiro e ficaria ali, parada, devolvendo as rugas do mundo, mas o caminho de volta não encontra trilhos na velhice e, mesmo que todos, ao seu tempo, adquirissem cada qual as suas próprias engelhas, Albergine não se livrou das que roubou do mundo e morreu do jeito que só os velhos morrem.

segunda-feira, agosto 18, 2008

Quem quer comprar? Quem vai vender?

Joana Bacana estava toda contente. Ia começar a festa e ela já estava se preparando. Queria uma casa linda! Aliás, na casa dela, Joana era a única que gostava, que ficava contente, ninguém mais, mas ela não perdia uma. Ficava ali plantadinha em frente à televisão, esperando passar e assistia todas as propagandas eleitorais gratuitas ou não. O que ela queria, na verdade, era escolher pra quem ia vender seu voto este ano.

Na última eleição seu voto lhe valeu boa parte das telhas de seu telhado novo. Telhas de barro. O telhado ficou show, pelo menos a parte que conseguiu cobrir com as 120 telhas, porque o resto continua com aquele amianto quebrado que comprou fiado no Mercadinho da Construção. Estes ela teve que pagar do seu bolso mesmo e levou quase um ano para saldar a dívida. Aquele seu Geraldo do Mercadinho bem que podia ter se candidato também, mas ele tem horror à política.

Apesar do telhado novo, Joana Bacana não conseguiu matricular sua filhinha na escola pública no ano seguinte à última eleição, nem com a ajuda do comprador de seu voto, que afinal, se elegeu.

Esse ano, ela estava pensando em ganhar um pouco mais, afinal, pode vender dois votos: um para prefeito e outro para vereador. E para prefeito, vocês sabem, é mais caro.

Sentada em frente à televisão, Joana fazia seus planos, diante dos anúncios dos candidatos:

- Ô madame aí do sofá, vê se dá uma colher: vote em Zé Mané!

Joana Bacana dava um salto da poltrona, ofendida:

- Tá maluco? Que colher que nada, eu é que quero o meu filé.

E lá vinha uma candidata:

- Companheiras, não vendam seu voto, ele é a sua garantia de um futuro melhor...

Indignada, Joana ameaçava desligar a televisão:

- Onde já se viu, é muita cara de pau dessa daí. Quer o voto de graça... Depois vai lá ganhar os tubos nas minhas costas e às custas do meu voto.

E finalmente, o candidato ideal para Joana Bacana.

- Alô comunidade da Conchinchina Bacana, estaremos aí com nossa caravana da alegria no próximo comício. Compareça e leve pra casa a nossa promessa de dias melhores.

Esse sim, pensava Joana, esse é o homem. Se arrumava e partia pro comício com a filhinha nos braços, avisando a todos os vizinhos.

- Vambora minha gente, que a caravana da alegria tá chegando. – E todos do bairro seguiam para o comício.

Mal sabe a Joana Bacana que a caravana da alegria dura somente três meses, que passados, não trarão para ela nem para os seus vizinhos, os sonhados melhores dias.

Joana Bacana não sabe, mas vendendo seu voto, sua filhinha vai continuar sem escola, seu marido vai continuar sem emprego fixo, sua rua vai continuar sendo esse valão de esgoto a céu aberto, sua televisão vai continuar sendo a mesma que sua patroa lhe deu porque não tinha mais o azul e a imagem é aquela coisa assim entre o vermelho e o amarelo...

- Mas tem controle remoto!

Tá certo, Joana, tem o controle remoto da televisão, mas o controle da sua vida e de seus vizinhos vai continuar nas mãos daqueles para quem você vendeu seu voto. Os seus direitos como cidadã, tais como escola para sua filhinha, emprego para seu marido, esgoto sanitário para sua rua, saúde para você, sua família e sua comunidade, estes e outros direitos, sim, ficarão cada vez mais remotos.

Sai dessa, Joana, você é bacana e seu voto não é banana!