terça-feira, outubro 14, 2008

A escritora e o economista

O começo foram Letras. Eu era A, você B, eu C, você D. Brincávamos com elas e elas conosco. Poema vai, poema vem. Histórias de nós que vivemos entre vogais, as tais mais importantes, as nobres, as jovens, abertas para o mundo, como nós. Juramos amor eterno, juramos nunca nos separármos... Delas, das Letras.

E ainda fazíamos do J o guarda-chuva e do E a escada do escorregador A, quando passou por nós o furacão dos vinte anos. Nunca mais te vi. Não sei por onde andei, mas elas vieram atrás de mim, em música, em drama, em tela, e apareciam em tudo o quanto eu tocava. Como Midas que ao invés de ouro, Letras.

Ainda estão comigo, todas as vinte e três e mais as agregadas. São poucas, porém, diante dos brancos que se enrolam entre meus cabelos cacheados. Aliás, tenho perdido os cachos pelo tempo, pela vida, como perdi você e você, as Letras.

A história que você conta hoje não se forma mais em Letras, mas em números. Eu estranho falar de sentimentos em números: eu sou o 1, você é o 2 e o resto é infinito, coletivo demais para ser lírico; transitivo demais para ser amor. Hoje você conta o dinheiro do mundo. O universo de Letras é finito pra você, apenas um conjunto na infinitude dos arranjos numéricos.

Conto histórias porque imagino infinito como números, e se não encontro palavras para dizer é porque o momento pede silêncio e o silêncio muitas vezes é pura poesia. Não há palavra que me fuja, há as palavras que protejo, que não digo, que reservo. Os números te fogem às vezes?

Posso parecer um pouco magoada com essa, digamos, deslealdade, mas afinal estivemos mais tempo longe do que perto. Vi que os brancos também te invadiram, como te invadiram os ternos, as gravatas. Temos, afinal, cada um a vida que nos é possível. E o tempo leva, ainda que eu o fraseie e você o equacione, ainda que eu o conte em Letras e você em números. O tempo nos leva e não nos trará de volta nunca mais.

domingo, agosto 31, 2008

Minhas e de mais ninguém


Albergine sempre teve muita facilidade para envelhecer. Desde muito jovem, a cada vez que piscava o olho, envelhecia. Por isso, presta sempre atenção nos seus próprios passos, pois sabe que, invariavelmente, a levarão por uma estrada sem volta. Cada passo deve ser bem passado. Bem passado mesmo, como bife, nada de bem pensar nada, não dá tempo. Se pensar, olha Albergine envelhecendo de novo.

Logo ela, que não gosta de espelhos, não precisava deles para perceber que envelhecia a toda hora.

A primeira vez que percebeu que envelhecia foi quando viu nascer sua irmãzinha, dois anos mais nova que ela. Albergine notou que havia uma diferença entre o novo bebê e o velho bebê - ela. Uma diferença que as pessoas faziam questão de deixar bem clara:

- Albergine, não sufoque sua irmãzinha com o travesseiro. Não faça isso, querida, você já é uma mocinha.

A partir desse dia, em que percebeu que envelhecia, a pequena Albergine passou a vigiar o envelhecimento dos outros também, a começar por aquela monstruosa criaturinha no berço. Pelo menos duas vezes por dia, ela ia lá ver se o bebê já “era uma mocinha” também. Mas nada, não notava diferença nenhuma nele, ao contrário dela, que envelhecia.

Ela não sabe, mas perceber assim tão novinha que envelhecia foi sua grande sorte. Desde então, Albergine vive assim, vivendo. Não quer saber de outra coisa, a não ser viver. Tem feito tudo o que consegue e que lhe dá prazer.

Sua irmã, bebê, não tem pressa de sair do berço:

- Deixa pra depois.

Albergine não deixava nada pra depois. Agora ou nunca, esse era o leme de seu veleiro. Um veleiro que leva Albergine a navegar por dias e dias como ondas num mar ventoso.

Ainda hoje veleja, veleja, veleja, mas, por mais que insista em viver, viver, viver, Albergine não consegue deixar de envelhecer.

- Olhem! Minhas mãos, o que são essas ranhuras? – Perguntava-se, olhando para o berço onde, ali mesmo, como numa canoa, o monstro teimava em permanecer.

À sua volta, ninguém caía em desuso. Aqueles tios e tias enormes de sua infância, todos ficaram ali mesmo como estavam, olhando para ela que passava por eles envelhecendo sem parar. Esses dias mesmo, Albergine, com seu capacete branco, me procurou e, espantada, me questionou:

- Onde estão elas?

Estranhei a pergunta e fiz aquela cara que a gente faz quando não entende, arregalando os olhos e puxando os cantinhos da boca pra baixo.

- Não faz careta, que eu quero saber onde elas estão.

Entendi menos ainda e Albergine chegou bem pertinho de mim.

- Você é muito mais velha que eu, sempre foi, mas aí está você sem carquilhas, enquanto eu sou um mar de engelhas e pregas, uma casca de ovo quebradiça, uma noz.

Eu nunca tinha reparado, mas olhando para Albergine vi que seu rosto já bastante engelhado, ganhava uma ruga a mais a cada momento e outras duas cada vez que ela caçava rugas em mim. Enquanto eu, ao contrário, perdia as minhas rugas para ela nesses olhares caçadores.

- Por favor, Albergine, deixe-me as minhas rugas!

Foi então que a mulher entendeu que havia tomado para si a velhice do mundo. Todos ao seu redor permaneciam jovens enquanto ela envelhecia.

Resolveu que atracaria seu veleiro e ficaria ali, parada, devolvendo as rugas do mundo, mas o caminho de volta não encontra trilhos na velhice e, mesmo que todos, ao seu tempo, adquirissem cada qual as suas próprias engelhas, Albergine não se livrou das que roubou do mundo e morreu do jeito que só os velhos morrem.

segunda-feira, agosto 18, 2008

Quem quer comprar? Quem vai vender?

Joana Bacana estava toda contente. Ia começar a festa e ela já estava se preparando. Queria uma casa linda! Aliás, na casa dela, Joana era a única que gostava, que ficava contente, ninguém mais, mas ela não perdia uma. Ficava ali plantadinha em frente à televisão, esperando passar e assistia todas as propagandas eleitorais gratuitas ou não. O que ela queria, na verdade, era escolher pra quem ia vender seu voto este ano.

Na última eleição seu voto lhe valeu boa parte das telhas de seu telhado novo. Telhas de barro. O telhado ficou show, pelo menos a parte que conseguiu cobrir com as 120 telhas, porque o resto continua com aquele amianto quebrado que comprou fiado no Mercadinho da Construção. Estes ela teve que pagar do seu bolso mesmo e levou quase um ano para saldar a dívida. Aquele seu Geraldo do Mercadinho bem que podia ter se candidato também, mas ele tem horror à política.

Apesar do telhado novo, Joana Bacana não conseguiu matricular sua filhinha na escola pública no ano seguinte à última eleição, nem com a ajuda do comprador de seu voto, que afinal, se elegeu.

Esse ano, ela estava pensando em ganhar um pouco mais, afinal, pode vender dois votos: um para prefeito e outro para vereador. E para prefeito, vocês sabem, é mais caro.

Sentada em frente à televisão, Joana fazia seus planos, diante dos anúncios dos candidatos:

- Ô madame aí do sofá, vê se dá uma colher: vote em Zé Mané!

Joana Bacana dava um salto da poltrona, ofendida:

- Tá maluco? Que colher que nada, eu é que quero o meu filé.

E lá vinha uma candidata:

- Companheiras, não vendam seu voto, ele é a sua garantia de um futuro melhor...

Indignada, Joana ameaçava desligar a televisão:

- Onde já se viu, é muita cara de pau dessa daí. Quer o voto de graça... Depois vai lá ganhar os tubos nas minhas costas e às custas do meu voto.

E finalmente, o candidato ideal para Joana Bacana.

- Alô comunidade da Conchinchina Bacana, estaremos aí com nossa caravana da alegria no próximo comício. Compareça e leve pra casa a nossa promessa de dias melhores.

Esse sim, pensava Joana, esse é o homem. Se arrumava e partia pro comício com a filhinha nos braços, avisando a todos os vizinhos.

- Vambora minha gente, que a caravana da alegria tá chegando. – E todos do bairro seguiam para o comício.

Mal sabe a Joana Bacana que a caravana da alegria dura somente três meses, que passados, não trarão para ela nem para os seus vizinhos, os sonhados melhores dias.

Joana Bacana não sabe, mas vendendo seu voto, sua filhinha vai continuar sem escola, seu marido vai continuar sem emprego fixo, sua rua vai continuar sendo esse valão de esgoto a céu aberto, sua televisão vai continuar sendo a mesma que sua patroa lhe deu porque não tinha mais o azul e a imagem é aquela coisa assim entre o vermelho e o amarelo...

- Mas tem controle remoto!

Tá certo, Joana, tem o controle remoto da televisão, mas o controle da sua vida e de seus vizinhos vai continuar nas mãos daqueles para quem você vendeu seu voto. Os seus direitos como cidadã, tais como escola para sua filhinha, emprego para seu marido, esgoto sanitário para sua rua, saúde para você, sua família e sua comunidade, estes e outros direitos, sim, ficarão cada vez mais remotos.

Sai dessa, Joana, você é bacana e seu voto não é banana!

quarta-feira, julho 16, 2008

Responsabilidade feminina, o Brasil é das mulheres

51 % dos eleitores brasileiros são mulheres, o que significa dizer que a preocupação com os temas que envolvem as questões de gênero deveria aumentar, pelo menos nos discursos dos candidatos. Abordar assuntos tais como a violência doméstica contra a mulher, ainda que saibamos que após eleitos, poucos candidatos se darão ao trabalho de continuar o curso dessa briga, ainda assim, é um ponto a mais de avanço na luta pela erradicação deste mal, que atinge 15% das mulheres e que, na maior parte das vezes, ocorre dentro de seu próprio lar. A discussão deve ser estimulada em todos os níveis e aproveitando todas as oportunidades.

Outras questões a serem discutidas e que estão apontadas em pesquisa do IBGE como os temas de maior precupação das mulheres são: igualdade de salários com os homens; legalização do aborto; anticoncepção e saúde da mulher; falta de creches e alternativas para deixar os filhos enquanto trabalham fora; crescimento da aids nas mulheres e participação das mulheres na política.

Por outro lado, mesmo sendo em maior número de eleitores há alguns anos, não temos conseguido ainda uma representação política expressiva. Apesar da Lei de Cotas (9.504, de 1997), que estipula o mínimo de 30% nas vagas para candidaturas femininas por partido-coligação, aprovada após a participação de mulheres brasileiras na Conferência Mundial das Mulheres em Pequim, em 1996, o número de candidatas a cargos eletivos ainda é inferior ao necessário: 22,1% nas eleições municipais de 2004. Essa falta de candidatas espelha o quadro de ocupação do poder por parte das mulheres: somos pouco mais de 400 prefeitas num universo de mais de 5.500 municípios no Brasil.

Desse lado de cá da urna eletrônica, penso nas razões que nos impedem uma maior participação na política. E não é difícil encontrar os motivos. Começam no momento em que a mulher acorda e, antes de sair de casa para iniciar a maratona eleitoral de visitas, encontros, reuniões, comícios etc., precisa resolver "questões de ordem" doméstica como: Quem vai fazer o almoço para os meninos, já que o marido (quando ele mora com a família), na melhor das hipóteses, está no trabalho. No meio de um inflamado discurso sobre as prioritárias questões da trilogia eleitoral educação-saúde-trabalho, uma assessora lhe catuca as costas e informa baixinho:

- Maria ligou, disse que Joãozinho tá com febre e seu João ainda não chegou. O que é que ela faz?

Pronto, nossa candidata entrega o microfone a algum concorrente, largando de mão as soluções coletivas de médio e longo prazos para atender às suas próprias urgências.

Talvez por motivos como este, aliados ao fato de que a política no Brasil é elemento tradicionalmente masculino (todos os partidos foram fundados por homens; a estrutura eleitoral foi criada e recriada por eles, até a democracia, embora palavra de gênero feminino, é criação masculina), é que tenhamos hoje um desequilíbrio expressivo também nos índices de candidatos eleitos, isto é, os homens têm se saído melhor nas disputas eleitorais, se elegendo em maior número do que as mulheres. Nas eleições municipais de 2004, por exemplo, entre os candidatos, 16,8% se elegeram e, entre as candidatas, apenas 8,6% foram eleitas.

Entretanto, mais uma vez, somos nós, mulheres, que vamos decidir o destino do Brasil e os nossos próprios destinos. Está em nossas mãos o poder de eleger candidatos e candidatas que possam mudar esses índices e tornar nosso país uma verdadeira Democracia, em gênero, número e grau.

sexta-feira, junho 06, 2008

Um namorado pra Martinha

Martinha Santinha já cansou de estar sozinha. Desde que se separou do crápula do Marcelinho Coisa-Ruim – que a deixou sem nenhum tostão, diga-se de passagem – que a Santinha não pisca o olho pra ninguém. Mas isso está prestes a mudar, porque a Soninha Toda-Pura, que tem muita experiência na área, andou lhe dando uns conselhinhos básicos e Martinha ficou toda animada.

Traçou um perfil bem bacana e meteu-se num site de namoro na internet. Não tardou pra Martinha arranjar o primeiro pretendente. Um sujeito da Lapônia (da Lapônia? E a Lapônia existe mesmo?) que queria casar com ela – mas só virtualmente. Falou até com o pai de Martinha (em laponês?), tudo bem certinho...

A Santinha esperou mais de um ano pela viagem à Lapônia. Chegou mesmo a desfazer o perfil tão bonitinho do site (ele exigiu) e falava com o “Lapom” pelo MSN, por e-mail, por telefone (em laponês?) etc. Esperou a aurora boreal, mas o sol da Lapônia não nasceu mais... Toda-Pura condoeu-se da amiga:

- Não desista, minha amiga, veja se consegue um namorado mais pertinho. A Lapônia é muito longe, tão longe que o Papai Noel só sai de lá uma vez por ano. Olha, faz de conta que você sou eu e namora esse aqui, tá vendo? Parece ser bem legal esse homem... Vai, faz de conta que você é a Mel-de-Cachos...

E lá foi a Martinha disfarçada de Mel-de-Cachos namorar a indicação de Toda-Pura. Ficou encantada com ele. Um gentleman, mas ao mesmo tempo, estranho.

- Ele entra no banheiro e fica lá falando sozinho...

- Não está falando sozinho não, Martinha, deve estar falando com outra mulher escondido no celular...

Naturalmente, Martinha reclamou com o namorado, que ficou furioso:

- Você está desconfiando de mim? Assim não vamos poder continuar, uma relação sem confiança não pode existir...

E blá-blá-blá, blá-blá-blá... Tanto, tanto, que a Santinha se sentiu culpada por desconfiar do homem e parou de ouvir as conversas dele atrás da porta do banheiro. Mas, depois de algumas ótimas noites de ótimo sexo, como pouco Martinha havia tido até então (o Coisa-Ruim era ruim até na cama!), ele sumiu. Sumiu, sem deixar vestígios. Não atendia o celular, nunca estava em casa, enfim... Tomou doril, e deixou a pobre da Martinha sozinha de novo, à mercê dos conselhos de Soninha Toda-Pura:

- Desta vez, Santinha, vamos arrasar no seu perfil. Nada de Mel-de-Cachos, Sol, Amora, sem essa... Que tal “Lili Atmosfera”? Pra abalar... Dessa vez você vai encontrar o homem ideal.

- Não sei não... Essa coisa de “homem ideal”... E se o “homem ideal” for mesmo gay?

- Não desista, Martinha, ou você vai passar o Dia dos Namorados sozinha...

- Isso nunca.

Decidida, Santinha marcou mais um encontro. Dessa vez, o homem era tudo de bom.

- Nem celular ele tem! – Contou Martinha para a amiga Toda-Pura. Tem passado dias e noites lá em casa. Disse que não consegue mais ficar longe de mim... Ai, ai, acho que ele está apaixonado. É consultor. Viu só que profissão bonita? Trabalha em casa mesmo, pela internet, dando consultoria. Só não entendi bem em que área, mas fiz de conta que entendi pra ele não me pensar que sou ignorante, né?

Desolada com a ingenuidade da Martinha, Soninha Toda-Pura resolveu ajudar a amiga e tomou umas consultorias com o especialista. Primeiramente, pela internet, depois marcou encontro com o consultor da Santinha e o desmascarou.

Pobrezinha da Martinha Santinha, dessa vez demorou a se recuperar. Mais um “coisa-ruim” na sua vida e ela ia se mandar pelo espaço sideral em busca de um marciano que lhe compreendesse e amasse verdadeiramente.

- Não quero mais saber desses homens de internet. Vou ao baile.

Comprou um vestido lindo, um sapatinho confortável e partiu pro baile, levando a Toda-Pura a tiracolo. Nada como uns bons conselhos.

Dessa vez, foi a Soninha que arrumou um par rapidinho. Um tremendo pé-de-valsa com quem dançou a noite inteira, enquanto Martinha Santinha continuava sozinha e se consolava em passar diante daquele espelho maravilhoso perto da entrada do salão, para ver mais uma vez e mais uma vez o quanto estava bela naquele novo traje de baile. Mas ninguém a tirava pra dançar...

Não contou conversa. Saiu pelo salão convidando todos os que estavam disponíveis, menos aquele lá do canto com a cara cheia de espinhas. Aquele não, né? É feio demais... Dançou, dançou, dançou, mas beijo na boca que é bom, nada. Enquanto isso, Toda-Pura rodopiava no salão com o mesmo sujeito a noite toda, feliz da vida!

Faltava menos de vinte e quatro horas para o Dia dos Namorados. Mesmo que conseguisse um agora nem daria tempo para comprar o presente.

- Vou desistir. Quer saber? Melhor ir pra casa, dormir na minha caminha macia e sonhar...

Pegou a bolsa e abandonou o ringue. Já estava quase vencendo os sei-lá-quantos degraus da escada na saída do baile, quando, do alto de seu novo e confortável sapatinho, levou aquele tombaço. Uns riram, né? Porque a cena é engraçada mesmo, ainda mais que seu vestidinho foi parar na cintura, mostrando a cinta que, diga-se de passagem, já não era assim tão nova. Mas alguém correu em seu socorro, ajeitou rapidamente seu vestido, pegou com delicadeza seu pé torcido e ajudou-a a levantar. Alguém de espinhas no rosto, feio que só “o cão comendo mariola”. Ela custou a acreditar. Um momento tão especial, tanta gente linda no baile para ajudá-la e aquele feioso se adiantou, tirando-lhe a chance de ser salva por um príncipe.

Mas, o feioso a amparou e, pouco antes depois da meia-noite chegaram ao pronto-socorro onde os médicos trocaram o bonito sapatinho por uma enorme bota branca. E o feioso ali ao lado dela o tempo todo. Os médicos se dirigiam a ele como se ele fosse um parente, o namorado ou o marido...

- Argh! Ai que agora pago meus pecados – Pensou a Santinha – Ele é tão feio...

Madrugada, dia 12. O homem levou Santinha Bota-Branca em casa, colocou-a no sofá da sala, despediu-se cordialmente, deixou um telefone para o caso dela precisar de algo e partiu.

- Mas ele é tão gentil... – E dormiu ali mesmo no sofá.

Tão logo o dia clareou, despertou com a campainha. Era o florista com dúzias de rosas vermelhas e um cartão: “Desejo que se recupere logo e quem sabe vamos tirar um ao outro para dançar no próximo baile”. Martinha olhou o nada e pensou:

- Até que ele não é assim tão feio...

sexta-feira, março 28, 2008

Raciocínio Lógico

Acordei. Se acordei, não morri. Se não morri, tenho que olhar minha agenda. Se olhar minha agenda, verei os compromissos. Se vir os compromissos, terei que cumpri-los. Se os cumprir, vou ter um dia cheio. Se tiver um dia cheio, não vou à praia. Se não for à praia, morro. Se morrer, não acordarei.

Fui à praia. Se fui à praia é porque não morri. Se não morri, acordei. Se acordei, abri os olhos. Se os olhos estão abertos, estou vendo a bagunça desse quarto. Se estou vendo isso, vou arrumar. Se arrumar, vou perder a manhã toda. Se perder a manhã toda, só vou à praia à tarde. Se eu for à praia à tarde, não cumprirei os compromissos. Se não cumprir os compromissos, serei demitido. Se for demitido, morro. Se morrer, não vou à praia.

Cumpri os compromissos. Se cumpri os compromissos, não fui demitido. Se não fui demitido, não morri. Se não morri, acordei. Se acordei, tomei café. Se tomei café, o estômago doeu. Se o estômago doeu, tenho que ir ao médico. Se for ao médico, tomarei remédios. Se tomar remédios, não beberei. Se não beber, não vou à chopada dos colegas da repartição. Se não for à chopada dos colegas da repartição, morro. Se morrer, não cumprirei os compromissos.

Bebi. Se bebi, fui à chopada dos colegas da repartição. Se fui à chopada dos colegas da repartição, não morri, Se não morri, acordei. Se acordei, olhei o relógio. Se olhei o relógio, vi que estou atrasado. Se estou atrasado, faço tudo correndo. Se faço tudo correndo, nem tomo banho. Se não tomei banho, estou fedendo. Se estou fedendo, Lucinha vai perceber. Se Lucinha perceber, nem vai olhar pra mim. Se Lucinha não olhar pra mim, estou frito. Se estiver frito, estou morto. Se estou morto, não bebo.

Tomei banho. Se tomei banho, não estou fedendo. Se não estou fedendo, Lucinha nem vai perceber do mesmo jeito. Se Lucinha não perceber, estou frito do mesmo jeito. Se do mesmo jeito estou frito, do mesmo jeito estou morto. Se estou morto, não acordei.

Mas acordei. Então é melhor virar pro lado e dormir de novo, que hoje nem vai dar praia.

Uma pequena homenagem a todos os quatorze mil e tantos colegas que, assim como eu, estudaram, entre outras coisas, Raciocínio Lógico para a prova deste fim-de-semana, em Brasília, por uma das cem vagas no Itamaraty. Boa sorte a todos nós!

sábado, março 08, 2008

Se eu não me chamasse Morgana


- Morgana! Morgana!

Acho que tem alguém me chamando no portão. Detesto que gritem meu nome no portão! Só por isso não vou acordar agora, nem vou me levantar agora...

- Morgana! Morgana!


... E também não vou mais me chamar Morgana.


Com os olhos colados e o travesseiro na cabeça, tontinha de sono, pensei: - Se eu não me chamasse Morgana? Se a roleta tivesse parado em outra casa e eu hoje tivesse outro nome? Teria a mesma personalidade? Seria eu desse jeitinho assim? Poderia me chamar Rosa, por exemplo.


Exalaria o perfume das flores se me chamasse Rosa? Esmeralda, certamente, não me chamaria, pois comum como sou, não tenho aquele brilho das preciosas. Também não me chamaria Graça – sou meio sem graça... (Nota-se, né? Ô trocadilho medonho!!!)


Lígia não me chamaria, nem ao piano do Tom, que, afinal, nunca sonhou comigo. Ana deixaria Amsterdã se fosse meu nome, e, apesar dos olhos tristes, também não me chamaria Carolina, nem carregando a dor de todo o mundo, nem a de Assis.


Não me chamaria Matilde sem poder amar Neruda; Isolda sem Tristão ou Julieta sem Romeu. De nada adiantaria chamar-me Raimunda ou Sebastiana... Maria de Alguma Coisa eu poderia me chamar, mas não sou de nada.


Quem seria eu se não fosse assim tão Morgana? A amada imortal de Beethoven?


Ah! Se eu tivesse as cores de Kahlo, mas quem gostaria de passar “Frida” por esta vida? Marquesa todas gostariam, mas alguém aí lembra o primeiro nome da de Santos?


Não gostaria de ser Helena e pôr em risco a cidade toda, e de forma alguma seria Salomé, nem pela cabeça do João. Também não seria Olga, apesar do orgulho que sinto. Mas poderia ser a “quase tudo” Clarisse, desde que nem tão “Perto do coração selvagem”.


É difícil saber! É difícil encontrar para nós mesmos a razão e o caminho de sermos o outro, ainda que nossa existência dependa do outro. Existiria eu sem você, leitor?


Um nome. Quando criança queria ser “Cláudia” como minhas amigas. Todas as minhas amigas se chamavam Cláudia, aliás, naquela época me parecia que todas as meninas do mundo se chamavam “Cláudia”, menos eu, e isso, naturalmente, se transformou em mais uma daquelas crises de personalidade adolescente.


- Por que você não me colocou o nome de Cláudia, mamãe!!! Tinha que colocar esse nome diferente em mim? Morro de vergonha na hora da chamada na escola. Todo mundo é “Cláudia” e só eu sou “morgana”!


Coitadinha da minha mãe!


Se nem sei que nome eu mesma me daria, como supus ser capaz de nomear meus filhos? Não os batizei em nenhuma religião, deixando para eles próprios a escolha ou não de um caminho religioso. Da mesma forma poderia tê-los deixado sem nome, para que escolhessem? A minha filha por pouco não se chamou Clara Adelaide, e até hoje ela agradece ao pai pelo nome que tem.


Quase desisti! Mas o sono estava indo embora a galopes e eu não queria acordar Morgana, de jeito nenhum. Queria um novo nome: Ana, Andréa, Aparecida? Berta, Berenice, Bernadete? Célia, Celina, Cristina? Denise, Diana, Débora? Elsa, Elisa, Eliane? Fátima, Fiusa, Fernanda? Geralda, Gilda, Guiomar? Hilda, Holoísa, Helena? Isa, Isolda, Ivete? Júlia, Juliete, Juliana? Kátia, Karine, Korina? Liliam, Leila, Liliane? Márcia, Mônica, Madalena... Ufa!


Madalena!
“O meu peito percebeu que o mar é uma gota”.

Abri os olhos e joguei de lado as cobertas, construindo a personalidade daquele nome. Agora que sou Madalena, preciso ser bastante “Madalena”. A minha Madalena não foi apedrejada por fanáticos, mas quem sabe ainda viveria outro “Romance no Deserto”, afinal, “até a lua arrisca um palpite de que nosso amor existe, forte ou fraco, alegre ou triste”.


Pronto, eu estava bem contente e ia ser Madalena por uns tempos. Levantei, e já caminhava para a sala quando ouvi aquela voz mansinha de menina:


- Mãe, tem uma pessoa te chamando no portão!


Acabaram-se as dúvidas, olhando aquela criaturinha que me chama “mãe”. Fosse quem eu fosse, mesmo que me chamassem “´Mesa”, “Papel” ou “Maçã”, ali estava o eu mais humano, mais real, mais sensível. O eu mãe, o eu mulher.


8 de março.

(
A coluna partida- 1944- Óleo sobre tela, de Frida Kahlo)

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

A primeira vez a gente nunca esquece

Pra mim não chegava a ser um mistério, algo desconhecido, como foi para a Tia Iva ou para a Tia Dora, mas, ainda assim, a minha primeira vez deu um certo trabalho. Tia Iva achou que a amiga Zilinha estivesse doente quando aquela lhe disse que sangrava todos os meses.

- Zilinha, você está doente. Olhe, a minha veio uma vez só e parou. Isto é o certo. Imagine, sangrar todo mês, você vai acabar sem sangue nenhum e vai morrer, Zilinha! Preste atenção, você vai morrer sem sangue, branca como Zéfa de Mané Zulão.

Naturalmente, Zilinha ficou apavorada com a idéia de morrer e correu para avisar a mãe que estava gravemente doente. A mãe, por sua vez, avisou a de Tia Iva que, esta sim, levou a filha imediatamente ao médico.

- Vamos ao médico, Ivinha.
- Ao médico, mamãe? Mas eu estou doente?

Sem querer assustar a menina cujas regras haviam sido suspensas assim que se deu a menarca, a mãe respondeu:

- Não, Ivinha, vamos apenas ver sua garganta.

No consultório, Ivinha ficou roxa de vergonha quando o assunto veio à tona e saiu de lá com uma receita de injeção e a cara deste tamanho:

- Garganta uma ova!

Com Tia Dora também foi inusitado, pois nem a mãe dela sabia todas as denominações do “chico”. Dorinha, aos treze anos, andava desmaiando pelos cantos da casa quando sua mãe a levou à drogaria de Raimundo Nonato, que tinha “consulta” de graça. Quando Nonato perguntou se ela já tinha ficado menstruada, a cara de espanto se formou nas duas que não tinham a menor idéia do que queria dizer aquela palavra tão difícil de se pronunciar.

- Incômodo? – Tentou ajudar o Raimundão – Aquele sanguinho que vem todo mês...
- Ah! O “chico”! – Compreendeu, enfim, a mãe de Dorinha, que explicou para a filha, ali mesmo na frente daquele homenzarrão, quem era o “chico”.

Já comigo, “os ingleses chegaram” dentro de um ônibus, aos meus treze anos, quando eu voltava de férias de Fortaleza para o Rio: 44 horas de viagem. Eu estava voltando na companhia de uma amiga da minha mãe: uma senhora gorda que ocupava o banco dela e metade do meu ao seu lado. Ela não fazia outra coisa a não ser mastigar para passar o tempo. Ali pela décima quinta hora de viagem "desceu" e eu não soube o que fazer, pois apesar de ter conhecimento do que se tratava e saber que ia ocorrer cedo ou tarde, eu simplesmente não esperava que acontecesse.

E agora? O que fazer? Era eu pensando no cubículo sanitário do ônibus em movimento, me debatendo nas paredes enquanto tentava acomodar um monte de papel higiênico na calcinha. Eu não tinha outra saída a não ser informar à minha acompanhante e pedir-lhe ajuda.

Nunca me arrependi tanto de uma coisa. A gorda, emocionada, foi de banco em banco, na mesma hora, perguntar a todas as mulheres do ônibus se alguém tinha um absorvente, pois a “coitadinha” acabara de menstruar pela primeira vez. A “coitadinha” era eu.

Passei o resto da viagem olhando fixamente para o encosto do banco da frente, sem desviar o olhar para nada, ouvindo cá e acolá um cochicho sobre minha menarca. E a mulher ao meu lado, orgulhosa de ter participado desse “momento tão especial na vida de uma jovem”.

Alguma dezenas de anos mais tarde, fui eu mesma, sem me dar conta, a “senhora gorda” quando minha filha, adolescente, saiu do banheiro enrolada numa toalha, dirigiu-se à cômoda no quarto, olhou pra mim e disse:

- Mãe...

Não precisou dizer mais nada e eu entendi tudo. Não pude conter as lágrimas nem o impulso de abraçá-la e, pasmem, correr para o telefone e ligar para o pai dela, que mora em outro estado, já com outra mulher e outros filhos:

- Zé, ela é moça, Zé!!!
- Claro que é, desde que nasceu, você tá variando, mulher?
- Você não tá entendo, Zé, ela é moça agora...
- Do que é que você está falando?
- Os ingleses chegaram, Zé!!!

Escutei o fone caindo. Será que ele desmaiou? Entendeu o que tinha acontecido à nossa filha e desmaiou de emoção. Claro! Mas ele retornou ao fone:

- Desculpe, o fone caiu, você sabe como sou desastrado. Você pode ser mais clara?
- A nossa menininha, Zé, não é mais uma menininha, ela já é uma mocinha, ela menstruou.

E choramos os dois ao telefone, até ele decidir que pegaria um avião naquele mesmo dia para dar um abraço de “boas-vindas” na filha, que ficou dias sem falar comigo direito, e com razão, mas virá a filhinha dela também e, um dia, ela escreverá a sua própria “crônica da primeira vez...”

terça-feira, janeiro 08, 2008

Sem carona...

Marcelino perdeu o emprego hoje. Era mototaxista. Trabalhou nisso durante dois anos e estava juntando dinheiro para comprar a sua moto e trabalhar por conta própria.

- Assim, para empresa, a gente não consegue ganhar grandes coisas.

Mas era melhor que nada. Marcelino agora está desempregado.

Apesar de todos os esforços para a regulamentação do transporte alternativo no Estado do Rio de Janeiro, ele está prestes a ser exterminado e os mototaxistas estão em estado de alerta. O Governador Sérgio Cabral ameaça seguir o exemplo da Colômbia – como se a Colômbia fosse exemplo a ser seguido – e proibir a “carona” nas motos, ou seja, levar a namorada para uma voltinha de moto pela cidade será coisa do passado – Bons tempos, aqueles! -, assim como o emprego do Marcelino, entre outros.

Diz o Governador que são os caronas nas motos que utilizam as armas para assaltar o cidadão, assim, acabando com as caronas, acabam os assaltos. Só rindo! É o mesmo que “amaldiçoar o sofá da sala pelo adultério alheio”.

Seguindo a mesma lógica, concluímos que se o tráfico de drogas tem sua base nas favelas cariocas, acabamos com as favelas; se as crianças de rua estão fora das escolas, acabamos com as crianças de rua; se a população de rua não tem casa para morar, acabamos com a população de rua. Se o alvo dos assaltantes são os cidadãos, acabamos com os cidadãos. O problema são os métodos de extermínio que seriam utilizados. Tenho até medo de pensar.

Ajude-me, leitor, a imaginar como seria, por exemplo, um Rio de Janeiro sem ônibus. Sim, sem ônibus, se o Governador entender que eliminando o transporte coletivo estaria eliminando totalmente os índices de assaltos a ônibus, tão comuns quanto os realizados pelos bandidos motociclistas em lombadas eletrônicas. Aliás, alguém já pensou em acabar com tais lombadas?

E para acabar com acidentes nas est radas? Acabam com as estradas, ora essa!
Aliás, deve ser por isso que as rodovias estão no estado em que se encontram. Deve ser o governo tentando acabar com os acidentes, acabando com as estradas.


Marcelino não sabe o que fazer – “Não sou bandido!” - e parece que Governador Sérgio Cabral também não.