terça-feira, abril 17, 2007

SerTão ou não ser tão...?

Depois de tantos anos por aqui, já não me surpreendo mais com o que é possível ao Ser Humano, ou ainda, com o que é possível vir do Homem. Estou bem acostumada com seu descontrole, com sua urgência, com seu medo, com seus devaneios, com sua razão, enfim, com tudo o que faz dele um destruidor de si próprio.

Mas “todo o resto”, afora o Homem, surpreende. E “todo o resto” afora o Homem é a natureza, ainda que seja, ele mesmo, parte dela.

Aqui, eles eram quatro, como os quatro amigos da história infantil, todos de rua. Uma matilha que escolheu a nossa casa como pouso seguro. Dávamos água – a vizinha dava comida - e, como nossa casa não tinha muros ou cercas, eles iam e vinham em total liberdade. Vida boa!!! Comida farta, água, carinho, amigos, liberdade, proteção, cuidado. Querer mais o quê? Um cachorro não quer mais nada!

Certo dia uma desapareceu. Passou dias sem vir em casa. Desconfiamos que algo podia não estar bem. Havia um silêncio solene entre os demais que me incomodava. Andei pela vila a sua procura, mas em vão. Inconformada, perguntei à outra:

- Você sabe onde ela está? Leve-me até ela.

Inexplicavelmente, a cadela saiu andando, voltando-se vez por outra para me olhar. Entendi seu chamado e sem pensar em nada a segui. Chegamos perto do campinho de futebol, a umas duas quadras da casa. Nesse local, a cadela andou em voltas de um montinho de terra, cheirou e, por fim, deitou-se ali e olhou para mim. Me aproximei devagar e juntei-me a ela, coloquei sua cabeça no meu colo e nos consolamos pela morte de nossa companheira.

Mas a vida leva e traz.

Um ano mais tarde, encontrei, no dia do meu aniversário, uma pequenina cadela, cor de caramelo, com os olhos envoltos num cordão negro, muito simpática, linda! Olhou pra mim daquela forma irreparavelmente apaixonante e caímos de amores uma pela outra. Levei pra casa e a apresentei para a matilha.

Os dois mais jovens: o cachorro, rei absoluto, e a cadela que encontrou o túmulo da outra, não aceitaram a nova cria muito bem e por vezes quase lhe arrancaram as tripas. Mas a mais velha, a qual chamávamos mesmo de “Velhinha”, esta, mais experiente, mais sábia, acolheu a pequena, protegendo-a.

Como os outros não permitissem que a cadelinha se aproximasse da comida, a Velhinha, do alto de sua sabedoria, para evitar que o filhote morresse de fome, e talvez no instinto de garantir, assim, a continuidade da existência de sua espécie, abocanhava um bocado da comida, mastigava-a e, pertinho do bebê, depositava ali aquela massa pronta para ser bem digerida pelo pequeno organismo de sua protegida. A Gala, hoje, é uma linda cadela que, bastante jovem ainda, garante a segurança da matilha, atualmente formada por velhos cachorros.

Mesmo a nossa mais anciã sabedoria não tem chegado aos pés do que essa velha cadela sabe sobre a vida. Conviver com a natureza e poder perceber essas sutilezas é um grande privilégio. Mas não deveria ser, não é?

Daqui onde estou, meu olhar atravessa a porta de vidro em frente à mesa de escrever, passa pelos cachorros descansados na varanda e vai encontrar as montanhas que guardam ainda um bocado da Mata Atlântica carioca – 93% dela no Brasil já foi “deletada” do mapa.

Estive lá, certa vez, levada por uma mulher encantada de longos cabelos e sonhos. Um lugar chamado SerTão. Fomos sós, as duas, ela já com seus bem-estados 62 anos, guiando seu jipe 4X4 e eu, de posse apenas de mim mesma e uma muda de roupa. Minimalismo.
Encravada no meio da floresta, depois de três quilômetros por subidas em verdadeiros degraus de pedras por onde só aquele cavalo de quatro rodas poderia subir, uma pequena cabana nos abrigou por três dias, nos quais nos enfiamos floresta adentro buscando talvez as respostas que, estando apenas dentro de nós mesmas, somente em estado de integração total poderíamos encontrá-las.

Ali, sem energia elétrica ou qualquer outra modernidade, ouvindo o bater das asas de enormes e ainda desconhecidos pássaros e o chincalhar dos macacos na mata, cada instante nos surpreendia a natureza, mas em nada me surpreendeu quando minha maga anfitriã me alertou para um barulho diferente no meio da floresta, que, mesmo parecendo estar tão perto de nós, devia distar pelo menos um quilômetro da clareira da cabana. Era um caçador de macacos. Um homem que invadia aquele santuário ecológico para destruir mais um pedaço de sua própria vida. O estampido da espingarda nos cala ao mesmo tempo em que alvoroça toda a floresta. Nos olhamos nos olhos minha amiga e eu. E as respostas que buscávamos continuaram lá dentro de nós mesmas.

6 comentários:

Anônimo disse...

Lindo seu texto!!! Realmente os cachorros são muito fieis e são capazes de morrer de fome ao lado do dono. O que não acontece com os gatos. Se vc.não der comida, eles vão embora. Os dois textos estão barbaros. O contato direto com a natureza, nos aproxima de Deus. Pois são coisas primitivas, que estão no mundo, desde que o mundo foi criado. Não existe coisas materiais e sim coisas naturais. Criadas por Deus(?)Ou pela Natureza(?).

Anônimo disse...

Calo-me quando sou surpreendida por boas idéias que saem da boca alheia. Fico sem ter o que escrever quando encontro sentimentos tão bem grafados. Tuas idéias e teus textos surpreenderam-me. São lindos.
E mais que belos fazem pensar e mais que pensar sentir. E mais que sentir agir. Obrigada.

Anônimo disse...

Bom-dia,Morgana!

Há momentos que o estado "racional" do ser humano me deixa atônita...
Em muitas situações vi animais "irracionais" muito mais racionais que o Homem.

Xêru no coração,amiga!

Anônimo disse...

Quanto Mais eu conheço,O SER HUMANO.
Mais eu amo os meus cachorros.rsrsrrsrs,eu não sei se é pra rir massssssssss.
beijos.

Anônimo disse...

O olhar com dois ângulos salta da memória da poeta e da escritora.
"Dizem que os cães têm olhos" ou talvez tenham alma. Os cachorros sentem-se próximos de nós, numa tênue dimensão, mas poucos de nós os vêem de verdade. O fluxo dessa sapiência me lembra Clarice L., engrandecido ficou o texto na sua evanescência terna.

No outro ângulo, o encontro com a misteriosa figura e a cabana, são vestidos pelas sombras do medo e da luz intensa que tem um poder de nos paralizar ou nos lançar num jato para dentro de nossas emoções mais fortes. Minimalismo existêncial? Despreendimento confecional? prefiro esse último foco na sua criação literária.

Guaracy Rodrigues

Anônimo disse...

ola
realmente vc esta certa... qdo mais conheço os humanos prefiros os cachorros... no meu caso os passaros... rsrsrs
mto bom seu texto continue assim...
caso queira retribuir a visita fique a vontede...
espero que possamos trocar idéia com o tempo...

abraços