sábado, junho 02, 2007

“Poisera” e “Jaera”

A Loba estava aflita e eu ouvia seus latidos perdida no meu mais profundo sono da manhã. O sol já se levantava e eu entreabria os olhos com dificuldade revirando na cama por uns minutinhos a mais entre as cobertas. Mas latia a cadela e cada vez mais alto, cada vez mais aflita, cada vez mais dentro dos meus sonhos:
- Loba! – Gritei.

E pulei da cama atrás do motivo de tanta aflição. Ela estava desesperada, querendo a todo custo entrar na varanda fechada por uma portinhola gradeada de ferro. Da porta da sala, tentei lhe acalmar ao mesmo tempo em que procurava com o olhar o que causava na cadela tanto desespero. Mas não havia nada à vista. Abri a portinhola e deixei que ela mesma me mostrasse a razão de seu alvoroço. Podia ser uma cobra, afinal de contas, ou outro bicho. E era. Ela entrou correndo diretinho no objeto de seu desejo:

- Loba! – Gritei mais alto.


Consegui evitar que ela abocanhasse o pequeno peri
quito azul e branco que arfava num cantinho da varanda, certamente enfartando de medo da predadora. Peguei o passarinho com as mãos. Uma das asinhas quebrada. Deve ter fugido de uma gaiola qualquer e veio parar quase na boca da Loba. Que sina! Ainda bem que nos encontramos, ele e eu, que sempre fui contra pôr os pássaros em gaiolas e fiquei totalmente solidária ao bichinho em fuga. Acalmei a ave, troquei de roupa e fui com ela na loja de animais para comprar comida e algum remédio para a asa quebrada.

Diante da minha intenção de soltar novamente o pássaro depois que tivesse lhe dado a comida e o remédio, o vendedor me alertou que o periquito, por ser um pássaro nascido e criado em cativeiro, não sabe voar, que certamente fora o que se passara naquela manhã, quando, em fuga, tentou voar e acabou sendo abatido por algum predador. Aconteceria novamente se eu o soltasse. Eu teria que manter o pássaro engaiolado para garantir-lhe a sobrevivência.

- Ptz! Pois é, eu que sempre fui contra prender os animais, ainda mais os passarinhos, tão livres que são, fiquei, como se diz, “numa sinuca de bico”, sem saída.

- “Pois é”. Dei-l
he esse nome.

Mas novamente o vendedor – aquele estraga prazeres –, depois de examinar a intimidade do passarinho
, me informou:

- É “Poisera”, fêmea.


Comprei para ela a maior gaiola da loja, esperando diminuir, assim, um pouco da minha angústia de manter o animal enjaulado. Dei-lhe tudo a que tinha direito: banheira, balanço, poleiros de várias formas, casinha, afiador de bico, jiló, enfim... Tudo com o que sonham os periquitinhos. Mesmo assim, a “Poisera” não se sentia feliz. Estava o tempo todo num cantinho da gaiola, não brincava na água, não se balançava no poleiro balançador, nem nada. Certamente, ela queria a sua liberdade, não havia dúvidas. Voltei à loja de animais, com a gaiola em punho, para mais uma consulta com o vendedor.

- Ela precisa de um companheiro. Está se sentindo sozinha.

Caramba! Claro que é isso! Como eu não pensei nisso antes? Mas vou prender mais um passarinho na gaiola?


- Ptz! Agora já era.


“Jaera”. Foi esse o nome que eu dei ao companheiro da “Poisera”, que comprei por alguns reais na loja de animais perto de casa. Levei de volta a gaiolona e o vendedor estava mesmo com a razão: os dois viveram, do jeito deles, felizes para sempre.


“Poisera” tinha uma personalidade muito estranha adquirida talvez depois do trauma
sofrido em sua desastrada tentativa de fuga. Deve ter pensado que, enfim, a liberdade não é para quem quer, mas sim, para quem pode, e ela não podia mais, já que não conseguiria sobreviver em liberdade. Eu olhava para ela e pensava:

- Pra ser livre é preciso saber voar. Acontece isso com as pessoas também, “Poisera”.

Certos dias, em que o trauma vinha-lhe à tona, ela atacava seu manso companheiro e bicava-lhe insistentemente a cabeça como se exigisse dele uma solução para aquela vida prisioneira. “Jaera”, demonstrava generosa compreensão, quando permitia e não revidava, deixando que “Poisera” descarregasse nele toda a sua fúria. Ela não sabia disso, mas ele também não podia fazer nada pela sonhada liberdade. Às vezes, mesmo sabendo que não tinha o direito de interferir, eu abria a portinha da gaiola e tirava o “Jaera” com a mão, acarinhando-lhe a surrada cabeça, até que a brava “Poisera” se acalmasse.

Outras vezes, ela entrava na casinha e ficava ali o dia inteiro, às vezes dois dias. “Jaera” no poleiro esperava pacientemente por sua perturbada companheira.

- Prefiro ela me bicando a cabeça do que enfurnada no quarto deprimida. – Era o que parecia me dizer o periquito.


Eles se acasalavam, eu acho, e ela colocava os ovinhos no ninho, mas não permitia que ninguém chegasse perto e acabava devorando-os antes que nascessem “meus netinhos
”.

Loba também se acostumou a ela e passava pela gaiola totalmente altiva. Devia sentir-se livre diante da prisão dos passarinhos, mas era dona de uma liberdade também limitada não pelas grades de uma gaiola, mas pelo muro de nossa casa.


- O que limita a minha liberdade? Sei eu voar? – Pensei.


Assim foi a vida de “Poisera”. Cada vez que entrava em sua casinha, demorava mais para sair. E todos os dias “Jaera” e eu esperávamos por ela. Desta vez, passou um dia, passaram dois, passaram três e percebi uma tristeza enorme no olhar sublime do jovemJaera”, além das formigas que entravam em fila pela casinha adentro, como abutres.

Pois é: já era! Era, enfim, o fim da história. Eu mesma peguei o corpo da passarinha e
enterrei no jardim, numa cerimônia solene, acompanhada pela gaiolona do “Jaera” e pela cadela Loba, que também estava ao meu lado, alguns dias depois, quando entreguei o periquito e sua “mansão” para que fossem levados a viver no sítio de um amigo.

3 comentários:

Linda Graal disse...

pois é....adorei!! amplexos!!

Anônimo disse...

Oi, bonito conto, belas palavras.
Parabéns.

Anônimo disse...

Catzinha: você me comove e me emociona com a sua sensibilidade. Por mais que eu possa vir a estudar psicologia, neurolinguística ou psiquiatria, acho que nunca vou ser capaz de compreender seu tino poético, lírico e cultural. Como eu tenho preguiça mental, intelectual; é para mim mais cômodo, mais fácil só e apenasmente te admirar!
Você é completíssima!
Parabéns!
Meus olhos estão rasos!
André Luiz.