segunda-feira, maio 14, 2007

Mas não se mata cavalo?

A chuva amanheceu cobrindo o mar. Um dia daqueles pra se fazer poesias sozinha numa casa na beira do mar. Acordei cedo e tomei esta decisão. Faria poesias... Mas antes, como todo poeta pela manhã, fui ao banheiro para os primeiros “versos fisiológicos”. Meditando sobre as verdades eternas, o olhar vagando solto pelo lavatório à frente, o mosaico de cerâmica quebrada acima dele, a parede descascada, o piso vitrificado, o tapete felpudo vermelho – uma delícia para pisar com os pés descalços – e, ao lado dele, a aranha caranguejeira.

- Aranha caranguejeira?

Preta, peluda, quase do tamanho da palma de uma mão. Paralisadas as duas, olho no olho, a aranha e eu buscávamos uma solução imediata e segura para fugirmos uma da outra.

Vasculhei o banheiro com o olhar, enquanto mandava mensagens ao meu cérebro para concluir suas ações fisiológicas o mais rapidamente possível, sob o risco de termos que abortar a missão matinal, o que traria transtornos pelo resto daquele dia de poesias. Não foi fácil! Qualquer coisa que ia saindo de mim teimava em retornar rapidamente ao lugar de onde veio, causando extremo desconforto.

Durante esse inconveniente e nada prazeroso vai-e-vem eu pensava em como me defender da “monstra” que aniquilava minha dignidade daquela maneira e me atordoava mais do que as contas para pagar.

Procurei um pedaço de pau, uma vassoura, qualquer coisa que eu pudesse usar como arma, mas o mais parecido com isso era o limpador de privadas. Como eu poderia matar a aranha com um limpador de privadas? Cheguei a pegá-lo para tacar na aranha, mas o espelho me denunciou sentada na privada com o limpador de vasos numa das mãos em posição de lançamento. Era ridículo demais até para alguém tão sozinho quanto eu naquela casa à beira-mar.

Ela continuava na soleira da porta olhando para mim, mas àquela altura do campeonato, a aranha já me destinava um olhar de desdém, quase de pena por alguém preso ao vaso sanitário por um cocô medroso. Abominei aquele olhar e tomei a decisão que salvaria o pouco da dignidade que me restava. Alcancei o tapete felpudo vermelho e o joguei em cima da aranha. Ela ficou imóvel ali embaixo.

- Será que está morta?

Como se aproveitasse o momento de trégua, o cérebro de mim ordenou veementemente a conclusão e, num só movimento peristáltico, o corpo expulsou de si os restos de mim.

- Ouff!

O barulho da descarga fê-la tremer, mas permaneceu imóvel e mais do que depressa saí do banheiro, corri até a cozinha, me armei com a vassoura de piaçaba e retornei ao campo de batalhas. O aracnídeo estava prestes a ganhar uma vassourada quando pensei:

- Ela é importante para o equilíbrio ecológico - todo nós somos. Não posso matá-la.

Como me livrar da aranha sem matá-la? E a minha vingança pelo constrangimento que passei na privada? E as contas para pagar? Ela não tem culpa das contas. Ou tem?

Tentou fugir. Aproveitando minha dúvida e devaneio, a aranha tentou sair por um cantinho do tapete, mas a impedi com a vassoura. E se ela fosse para o meu quarto? E se eu a encontrasse à noite entre meus lençóis brancos de cambraia bordada?

Mas não vou matá-la, de qualquer maneira! Pelo bem ou pelo mal, segurei meus instintos assassinos e fui empurrando a aranha embaixo do tapete até a porta da sala, onde pretendia expulsá-la para o jardim. Ao pé da porta desconfiei. O tapete não se mexia mais. Estaria ela novamente se fingindo de morta? Esperta essa aranhinha! Ou será que preparava um bote? Aranhas dão bote?

Só retirando o pano para saber, mas cadê a coragem? Ela era enorme! E lá estava eu, mais uma vez superando meus medos em busca da sobrevivência. Com a pontinha da vassoura levantei o tapete e verifiquei que a minha inimiga estava toda enroladinha em si própria e com uma das pernas quebradas...

- Oh, não! - Fiquei com pena - O que eu havia feito? Havia machucado o bicho que apenas tinha errado o caminho e, perdida, encontrava-se na porta do banheiro da minha casa. Perdeu a perna e o rumo de sua existência. E eu? O que eu faria agora?

Tentei continuar a minha missão de colocá-la para fora e deixar a natureza cuidar de seu destino, mas com o empurrão que lhe dei, acabei arrancando outras duas patinhas. Não tinha mais jeito: Com uma vassourada certeira, acabei com a vida da aranha.

- Ué? Mas não se mata cavalo?

3 comentários:

Anônimo disse...

Só de ler, fiquei toda arrepiada.
Nunca teria terminado o serviço fisiológico e o que pior nunca passaria por cima deste "monstro"
Você realmente nos transporta para a cena da Crônica.
Adorei.
Delicioso, apesar do pavor a monstros bem menores que este.
beijos
Fátima

Anônimo disse...

Sim, se mata cavalo, até semelhantes....
Perfeita a crônica.

Anônimo disse...

Adorei! É uma visão bem humorada, do que uma mulher passa em uma situação tão deconfortável. Achei uma comédia, apesar de não ter sido eu a infortunada que teve essa experiencia desagradável.