segunda-feira, fevereiro 12, 2007

O que somos nós?

Há vários anos, quatro moças que dividiam um conjugado no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, viram-se, em menos de meia hora, agarradas a uma mangueira de borracha, dessas que servem para molhar jardim, do lado de fora do décimo andar do edifício onde moravam. Foram caindo uma a uma, tudo transmitido ao vivo pela TV.

Tal qual em onze de setembro de 2001, nesse dia – do qual já são passados tantos anos - eu atravessava a sala da televisão rumo a outro cômodo, quando me percebi diminuindo o ritmo do caminhar, e não desgrudei mais os olhos da TV até que tudo se tornasse tão banal aos olhos da mídia que ninguém mais desse atenção ao fato. Um bandido, fugindo de uma tentativa de assalto ao edifício onde moravam as moças, havia ateado fogo no corredor do prédio, bem na frente da porta da casa delas. Os conjugados no Rio não têm porta de serviço, apenas uma entrada e elas não podiam sair por lá, devido ao fogo e a fumaça que já invadiam o pequeno apartamento de um só cômodo. A única saída foi a janela. A polícia e os bombeiros foram chamados e formou-se o fuzuê em frente ao prédio. Formaram uma arena e colocaram colchões, cama elástica, cobertores, mas era o décimo andar. Esperavam a escada magirus, mas não chegou a tempo. A Rua Senador Vergueiro é um corredor estreito, entre os populosos bairros de Botafogo e do Flamengo. Por lá passam muitos ônibus. A escada ficou presa no engarrafamento.

Num ato de desespero e esperança, alguém subiu ao terraço do edifício e jogou de lá a mangueira. Elas, que já estavam no parapeito da janela acuadas pelo fogo, viram naquela borracha a derradeira possibilidade e se agarraram a ela como se agarra a própria vida.

Foram caindo uma depois da outra, restando só a última. Sozinha na mangueira ela ainda resistiu uns quinze minutos, tentando quebrar a janela do nono andar com os pés descalços balançando a mangueira com o corpo em direção à vidraça, mas foi em vão. Todos gritavam e torciam para que ela conseguisse, mas, ao vivo para todo o Brasil, a moça perdeu as forças nos braços e foi escorregando pela mangueira atéa largar a pontinha e despencar como suas amigas. A comoção foi geral e o terror absoluto.

Detido, o bandido se limitou a dizer que não podia imaginar que havia pessoas no apartamento. Será que ele pensou que o edifício que ele assaltava era um prédio fantasma?

Nada havia me destruído mais do que ver aquelas moças caindo uma a uma e se espatifando na arena formada por curiosos e jornalistas, proporcionando um espetáculo de terror. Nada, até saber do menino aos pedaços pelo subúrbio carioca.
Se tivessem sobrevivido, as moças hoje teriam a idade da mãe do João Hélio.
Tenho vergonha de olhar nos olhos das crianças. Porque essa responsabilidade,ao contrário do que se pensa, é nossa.

16 comentários:

Julia Pessoa disse...

dá medo pensar q existe gente assim no mundo...

Anônimo disse...

As informações são tão rápidas, que mal temos tempo de chorar e fazer nosso luto pelas meninas que caíram, pelo jornalista torturado, mortos em uma cratera (fruto do vazio de nossas instituições), pelo menino arrastado... Outras barbaridades acontecem - 10 mortos no final se semana - e não assimilamos todo esse horror que nos cerca. Não há espaço, outra notícia, outra manchete aparece. E nos protegemos "mentalmente" de tanto sofrimento. Ficamos horrorizados com tudo que acontece em Bagdá, mas, e com o que está acontecendo conosco, quem ficará horrorizado? Vivemos uma guerra civil, onde não há líderes, onde não há um inimigo explícito.Só há uma população imobilizada, apática, onde o Estado se mostra completamente ineficiente.
Orai por nós pecadores, orai por nós..

Anônimo disse...

É, disseram bem, meninas... Infelizmente! O certo seria que nem presisássemos tecer comentários assim, porque fatos como esses nem deveriam estar ocorrendo.:(

Beijinhos carinhosos.

Wagner Marques disse...

pow, não comentarei o post, mas sim o blog como um todo. com uma palavra apenas: MARAVILHOSO.

voltarei sempre!

Abração!

Anônimo disse...

Parabéns Morgana:
Que grande talento vc tem, li sua crônica: O que Somos Nós?
Mto lindo, emocionante. Talento, minha amiga é Deus quem nos presenteia, por isso devemos sempre agradecer ao nosso Pai Maior por essa dádiva maravilhosa que temos, que vc tem.
Bjnhs e fique com Deus.
Sucesso, muito sucesso p/vc.

Anônimo disse...

Mulher!!!
Que coisa linda suas crônicas!!!
Parabéns por tão grande talento. A sua sensibilidade fala a minha alma como a música que toco fala ao meu espírito as vêzes despedaçado pela angústia, decepções,violência,hipocrisia, descaso,diferenças, crueldade e tudo que nos leva a crêr que nesse mundo eu pergunto "quem somos nós"? Somos tão pequeninos nesse mundo, mas existe um outro cheio de amor e misericórdia a nos aguardar. Para ele tento aqui viver almejando toda Glória!!!

Anônimo disse...

Ao ler sua cronica tive q chorar. Eu com meu sonho queria tanto poder fazer um pouquinho pra tentar melhorar esta situacao,mas ao ver tanta crueldade ,hora dos governantes nos humilhando com tanto descaso ,hora a maldade humana se superando ...Ai amiga me sinto tao fraca ,tao utopica .Boa pergunta ,quem somos nos ???

Anônimo disse...

Oiii Morgana!!!!!
Lindo seu texto desta semana!!!!!Quem somos nós????Boa pergunta! A Vila não vale mais nada???Quanto vale a nossa vida???? Suas cronicas são lindas e nos chamam a reflexão!!!

Anônimo disse...

impossível negar o valor do que vc escreve.
quer como literatura quer como reportagem da banalização da violência.
me lembro muito bem do episódio da Senador Vergueiro.
Como sempre você dá conotações humanas até para as barbáries.
obrigada Morgana, por escrever tão bem e por me dar o prazer de ler sua literatura

Anônimo disse...

Não resiti a chamada "...eu atravessava a sala da televisão rumo a outro cômodo quando me percebi diminuindo o ritmo...
Li esses e mais outros textos, amei ... não me surpreendi ao ver que havia lancado um livro de textos para teatro. Maravilhosos e teatrais são seus textos. Também gosto de observar tudo... exatamente tudo e não entendo como o stomago das pessoas é tão grande. Não posso suportar indiferente tamanha violencia. mais violenta que a violencia é a hipocrezia . bem desculpe o recado descuidado com muitos pontos exagero nas reticencias nesse computar holandes sem cedilha um beijo Vc tem uma alma linda.

Anônimo disse...

Parabéns Morgana!! Adorei seu blog. Suas crônicas são sensacionais!!!!!

Anônimo disse...

Desesperador!Moro num conjugado, fico pensando na tragédia. Quanto ao João Hélio, me arrepio de tristeza só lembrar. Me faltam palavras...

Ramones

Anônimo disse...

Desesperador!Moro num conjugado, fico pensando na tragédia. Quanto ao João Hélio, me arrepio de tristeza só lembrar. Me faltam palavras...

Ramones

Anônimo disse...

Essa crônica “O que somos nós?”, de Morgana Pessôa,
impressionou-me deveras. Tanto porque enfoca um
assunto atual, Violência Urbana, como pela capacidade
da autora de se comunicar em prosa. A crônica é um
gênero perigoso da Literatura. Tanto pode ser eterna
como passar rápido sem deixar rastro, como incêndio
fugaz. Acreditamos que esta crônica de Morgana vai
permanecer.
É um texto bem escrito, em linguagem culta, muito bem
ordenado. Usa o passado para explicar o presente,
ensejando inquietações com relação ao futuro. Apesar
de valer-se do eu para expressar sentimentos em
relação a fatos reais, ascende ao universal, vez que a
violência urbana não é um problema apenas do Brasil,
mas abrange cidades do mundo inteiro. E nos magoa um a
um, como um todo.
Gostei muito do texto. E digo mais. A autora se dá
muito bem na prosa!
Realmente... realmente... Crianças do mundo inteiro:
perdoai-nos!

(Maria José Limeira é escritora e doce jornalista
democrática de João Pessoa-PB)

Anônimo disse...

bem escrita, como sempre... a morgana é assim, dá com destreza seu
recado! gosto!

Anônimo disse...

Comentar esta crónica não é fácil. Pela mesma razão, fiquei em silêncio
perante o poema "Carrascos", de Líria Porto. Numa época que cultiva a indiferença e a falta de sentimentos, estes textos são uma pedrada no charco
Foi com um nó na garganta que os li.
Nós vemos, mas "ver não é olhar". Gosto da maneira como Morgana olha o mundo
(E é a maneira como o olhamos que define o que somos) . E ela dá aos
acontecimentos que narra um toque próprio que me emociona e interpela.
É uma observadora atenta que já me levou, algumas vezes, a reflectir sobre
quem é e o que é o homem. Perante este horror, não é possível identificar o
homem com a dimensão racional.
"(...) Porque essa responsabilidade, ao contrário do que se pensa, é nossa".
Sem dúvida, Morgana! Nós somos responsáveis pelo que fazemos, mas não
o somos menos pelas nossas omissões.

Um abraço