segunda-feira, março 30, 2009

Os olhos verdes de Rosário

Rosarinho mora bem ali virando a esquina, naquele sobrado ao lado da mercearia de Nôco de Zefa, a gorda. Mas tudo está muito triste por lá e confuso. Tem uma multidão de gente e bicho, tudo parado na frente da casa de Rosarinho. Dona Socorro morreu hoje de manhãzinha. Souberam pelo canto do galo que estava diferente, meio choroso. Quando Rosarinho ouviu aquele cocorocó chocho correu tateando até o quarto da mãe, certa de sua passagem.

Ninguém gostava muito da viúva. Diz o povo que ela sempre foi meio doida daquele jeito, esquisita demais. Os pais dela, avós de Rosarinho eram primos “legítimos de Braga”, por isso a bicha endoidou cedo: cismou que Rosarinho não podia abrir os olhos nunca porque verdes como são alguém ia acabar roubando as vistas da menina.

- Só abre passando por cima do meu cadáver! – Respondia a doida quando lhe desafiavam.

Rosarinho cresceu de olhos fechados.

Hoje tá lá a multidão de gente e bicho, tudo querendo saber se Rosarinho vai abrir os olhos e se são mesmo da cor das esmeraldas. Tem fila. Organizaram senha e eu já peguei a minha, mas não sei se vai dar tempo porque o enterro vai ser às cinco, antes de noitar, que de noite enterro não acontece. De noite alma nenhuma fica junto do corpo no caixão.

Ninguém disse que Rosarinho vai abrir os olhos, a não ser o povo todo da cidade. Não se sabe onde começou essa conversa, mas o fato é que taí o velório de Dona Socorro mais concorrido que o de Clodovil e os olhos de Rosarinho mais famosos que favela do Brasil.

Escola nunca frequentou e quase não saiu de casa. Só à Missa e com véu na cabeça, como as carolas de toda parte. Mesmo assim, Rosarinho era desejada pelos rapazes da cidade e dos arredores. Não raro saía um enxotado da casa por Dona Socorro, a doida, e acobertado pela vizinha Zefa, a gorda. Não preciso nem dizer que a doida e a gorda arengavam mais que político de oposição.

Cartas chegavam aos montes e imagino que falavam de seus olhos verdes nunca vistos, de como gostariam de abrir aquelas pálpebras alvas como toda a pele da mocinha miúda. Certamente queriam ser cada um a primeira visão de Rosarinho ao abrir seus olhos para o mundo.

De minha parte duvido que ela ainda não os tenha aberto nem ao ouvir cantar um colerinho apaixonado naquele pé de azeitonas pretas cuja copa beira a janela de seu quarto no sobrado da viúva. Sou dos poucos que duvida que Rosarinho nunca tenha aberto os olhos quando os de sua mãe estavam fechados. Quem de nós já o fez?

E nem é assim tão bonita a filha da morta, mas seus olhos tornaram-se o objeto de desejo de toda a pequena cidade. Fazer o quê? Esse povo não tem nem televisão que preste... Melhor que isso são os olhos de Rosarinho que estarão abertos hoje, se Deus quiser.

Mais doido que a doida Socorrinho é o prefeito João Sebastião, filho de portugueses sebastianistas. Pois não é que o maluco do JotaSeba - como era chamado - mandou vir a banda de música da cidade para o enterro da viúva? Aproveitou a multidão para divulgar o novo plano de atendimento do Ambulatório Municipal. Ia servir frutas e cafezinho na fila a partir de seis da manhã para alimentar os que tinham passado a noite toda ali esperando pra pegar a senha de atendimento. Ô povinho pra gostar de fila! Já acreditam até que o prefeito vai mandar servir almoço nesta aí do velório. Olhe! Tem gente até de garfo na mão!

O cortejo vai já sair e até agora nada de ninguém ver os verdes de Rosário. Quem entrou no velório pra se despedir da velha voltou dizendo que a moça tá de óculos escuros e que ninguém vê nada além das lentes negras. Tem pouca luz lá dentro e sem luz nenhum olho é verde.

Seu Martinho saiu esbravejando que tinha ficado horas na fila e nem conseguiu ver nada. Estava se sentindo enganado:

- É propaganda enganosa! Ficamos horas na fila à toa.

Mas uma boa alma teve a idéia de ir falar com a moça que até então estava achando que a multidão representava o apreço da cidade por sua mãezinha morta. Explicaram o motivo da algazarra e a moça ficou apavorada.

- Foi o que ela disse! Não vai abrir os olhos de jeito nenhum.

A multidão se alvoroçou. A Banda parou de tocar. Chamaram o prefeito. Ele tinha que fazer alguma coisa. Mas fazer o quê? Falar com o padre, ora essa! O padre é o único que pode convencer Rosarinho a abrir os olhos.

- O prefeito já está lá dentro falando com o padre.

Então vamos esperar que já já Rosarinho vem com seus lindos olhos esverdear a multidão sofrida.

Se já são quatro horas o cortejo fúnebre está saindo e ali bem pertinho do caixão vem a enlutada Rosarinho, véu negro sobre a fronte encobrindo os óculos escuros. Se estiverem abertos os olhos verdes veem o chão. Tão miúda e tão gigante, capaz de calar a exaltada multidão. O cortejo segue em silêncio.

- Correu a boca pequena que ela só vai abrir os olhos quando for jogada a primeira pá de cal no caixão da mãe. Dizem que quem disse foi o prefeito que disse que o padre disse que ela garantiu.

Então é já já, pois veja que o caixão está descendo e o coveiro está a postos com a pá. Mas Rosarinho mandou ele parar e ele parou. Ela quer se aproximar do túmulo da mãe e lhe reverenciar pela última vez. Muito bonita a sua atitude, pois a mãe é uma doida mas é a mãe.

Por isso, Rosarinho chegou bem perto da cova e lentamente deixou o tule negro rendado escorregar pela face. Ajudou com a mão e o pano seguiu bailando diáfano para junto de sua mãe. Olhares incrédulos. Multidão alvoroçando-se. Buxixo. Que pele alva, lisa tem a menina. Seus olhos devem ser mesmo um encanto e o que todos querem é ser encantados pelos verdes de Rosário. Ela sabe disso e aceita pois, se assim não fosse ela não estaria tocando seus óculos, tirando-os devagar. E deve ser doloroso pois sua expressão é de dor, sua cabeça pende pr´um lado e pro outro como se fugisse da luz. Segurando os óculos, Rosário esconde os olhos ainda fechados com as mãos. O prefeito, ao seu lado, era o único que podia ter feito isso, e pegou das mãos da menina os óculos. Pôs no bolso. Discretamente.

- Vai vender! Quanto vale os óculos de Rosarinho?

E finalmente Rosarinho foi retirando as mãos que lhe cobriam o rosto e vagarosamente, com dificuldade abriu seus grandes olhos sobre a estupefeita multidão. Após alguns segundos de inquietação e espanto, o povo foi-se embora.

- Vixi Maria! Rosarinho é cega.

Completamente. Seus olhos são verdes sim, mas não a íris ou a pupila, todo o seu globo ocular é de um verde hepático, doente, como sempre deve ter sido aquela mocinha protegida por sua mãe, a doida.

E como fala o povo e o povo fala mesmo, já andam dizendo por aí que as vistas de Rosarinho foram roubadas por alguém para quem ela abriu os olhos. E danaram-se a especular quem roubou as vistas da menina. Mas isso é outra história.

9 comentários:

Unknown disse...

Morgana parabéns...meus olhos , que não são verdes, ficaram grudadinhos na história de Rosarinho.
Seu passeio é gostoso com as
palavras.
Besitos da amiga do Orkut,
Christinna Costa.

MARIAESCREVINHADORA disse...

Muito bonito o seu jeito de contar, Morgana. Prende do começo ao fim.
Adorei.

Ventura Picasso disse...

Como sempre, não posso desviar o olhar, quando vc conta um conto.
Parabens!
Bjussssssssss

Vitor Bricio disse...

É assim: Verde. Seus olhos não são cegos pra mim que não protejo os meus...Nem a mim, verde. Eu protejo errado.

José Calvino disse...

Querida Morgana,
Em todos os seus contos, a criatividade e a vivência estão presentes. "Os olhos verdes de Rosário", denota a sutileza do seu conto, singularmente belo.
Parabéns, escritoramiga!
Beijos do,
José Calvino

Erick Costa (erickcosta.zip.net) disse...

Adorei...meus olhos esverdeados ficaram grudados as palavras lá escritas.
Um beijo!

victorvapf disse...

Escritora porreta! Vai escrever bem assim, la na, nao sei aonde!!!

Doroni Hilgenberg disse...

Morgana,

Beleza de conto

Uma mãe, quer seja rica ou pobre, sempre defende sua cria, e quando esta é cega então, a defesa é dobrada. E agora que se foi... a história merece continuação
bjs
Doroni

Clodos Paiva disse...

Muito legais, os seus contos.