sábado, novembro 24, 2007

Perigo nenhum

Celminha – assim com “c” mesmo – mora lá no alto, mas trabalha cá embaixo, na creche; seu marido, numa lanchonete em Copacabana.

- Aquela, assim, que fica numa esquina, sabe qual?

Há centenas de esquinas em Copacabana e, em praticamente todas, há uma lanchonete ou um bar ou um botequim, o que é mais comum - e reflete bem a cultura do bairro. Aliás, quantas esquinas têm em Copacabana? Vou contar qualquer dia, ando mesmo um bocado à toa...

- Mas é aquela que fica aberta até tarde... Ele chega sempre depois das quatro da manhã, daí nessa hora eu me levanto, vou até ele e a gente fica de “conversê” até de manhã... Sabe como é, né? Por isso eu tô com essas olheiras assim grandes...

Dividem os dois cômodos com os quatro filhos que devem ouvir o “conversê” de Celminha e seu marido.

- Nada! A gente conversa baixinho...

Imagino que deva ser bem perigoso subir o morro de madrugada, mas Celminha afirma que não. Perigoso mesmo é quando sobe a polícia.

- Daí sim, porque eles já sobem atirando pra todo canto. Nesses dias quem tá embaixo fica embaixo, quem tá em cima se esconde onde pode. As crianças vão prum buraco debaixo da cama que fizemos, porque eles ficam sozinhos lá depois da escola. Um cuidando do outro. Quando escuto os tiros aqui da creche, meu coração aperta, mas entrego a Deus. Ele sabe o que faz.

Será que sabe? Será que alguém sabe quantas esquinas têm em Copacabana?

Do lado da creche, bem ao lado, coladinho mesmo, tem uma escola municipal e, em frente a ela, guardando a segurança dos moradores, uma patrulhinha fica parada com dois policiais. No último tiroteio – esse que deu nos jornais, em que a polícia subiu o morro enlouquecida atrás do ladrão de galinhas, o Tico, de vinte anos, que roubou o italiano e que o jogou no meio dos carros na Vieira Souto – os dois permaneceram dentro da viatura, um lia o Dia D enquanto o outro lutava com seu celular, “pitocando” as teclas incansavelmente.

- A gente não pode fazer nada não. Não podemos nos meter com o morro. O morro é outro departamento. Nossas ordens são para permanecer aqui.

Também, pudera, mesmo se quisessem se mandar dali, só poderiam se fosse a pé, porque de carro, babau! Não dá. O pneu está furado há meses e deu pane no carburador. Saiu até nos jornais. Fizeram reportagem especial, entrevistaram autoridades, mas resultado mesmo, nenhum. A patrulhinha continua lá “guardando a segurança” no meio do fogo cruzado, como os filhos de Celminha e todos nós.

O Tico sumiu. Dizem que mataram para a polícia sair do morro. A mãe do rapaz tá desesperada. Celminha conhece ela e garante:

- São tudo gente boa!

sexta-feira, novembro 09, 2007

E a vaca foi pro brejo...

Alguém aí achou que seria diferente? No Rio de Janeiro é assim: se a vaca não for pro brejo sozinha, o carioca dá uma forcinha. Isso por causa da festejada hiperatividade crônica carioca, cuja famosa malandragem hoje chacoalha entre o vandalismo e o “vandalismo criativo”. O “ser malandro” hoje tem outra ginga. O cara malandro, mas malandro mesmo, dos dois mil anos, é aquele que emperra e diz:

- Quer apostar que eu faço?

E faz a coisa mais idiota do mundo só pra mostrar que é “fodão”.

- Então... Olha só... Deixaram a vaca ali sozinha porque quiseram. Tava pedindo pra ser pichada, Né? Pô!

Isso de começar uma frase com aquele “entãããão” arrastado é tão irritante quanto ver uma vaca do Cow Parade pichada: avacalhação! Tenho a impressão que o carioca arrasta esse “então” no começo da frase para dar tempo de pensar o que vai dizer no resto dela. Pior que isso só mesmo terminá-la com “pô”. Brilhante conclusão!

Assim como o leitor, eu também estou aqui matutando no significado da expressão “vandalismo criativo”, que pra mim parece uma tentativa de justificar o injustificável.

- se você não pode com o inimigo, junte-se a ele.

Deve ser isso. O “criativo” acabou virando o argumento dos covardes que não encontram (ou sequer procuram) as armaduras corretas para suas defesas, produzindo, assim, o espetáculo da “avacalhação carioca”.

- Então... Avacalhação é colocar esse monte de vacas espalhadas pela cidade, pô!

Há quem pense diferente, meu amigo, mas pensar é direito de cada um, ainda que uns tantos tenham pouco sobre o que pensar, e conduzam seus neurônios e minhocas para temas com “a importância das vacas da praia de Copacabana” ou “por que as paredes internas do metrô do Rio ainda não foram pichadas?”.

A parada das vacas tem feito tanto sucesso no Rio de Janeiro que a pichação de uma de suas estrelas tornou-se manchete nos jornais cariocas, que deram ao fato maior destaque do que a muitos outros assuntos importantes, como a estonteante notícias veiculada pelo Jornal Nacional, informando, no final da edição, que um avião da TAM teria feito uma manobra brusca no ar em pleno vôo comercial, assustando os passageiros que, em seguida, foram informados pelo comandante que a guinada serviu para desviar a aeronave de outra vinda em sua direção. Uma bomba no meio do caos aéreo brasileiro! Eu, que passava pela sala no momento da revelação, fiquei aguardando para saber mais, mas... Nem no tele-jornal, nem nos impressos. Ninguém falou mais nada e a vaca foi pro brejo mais uma vez, junto com a BRA.

Enquanto isso, nas esquinas cariocas, andam mugindo:

- Então... Pô!

sexta-feira, novembro 02, 2007

Nascida entre bruxas. E bananas!

Naquela noite me abandonaram na sala de cirurgia, de tão apaixonados que ficaram todos por você, aquele bebezinho lindo de grandes olhos negros... Já ali você começou a enfeitiçar o mundo, como uma das autênticas. O vigia me encontrou lá pelas duas da madrugada, eu pensando que aquilo ali era o céu, ainda grogue da anestesia:

- Que horas virão os anjos?

Tomou um baita susto quando viu meus olhos abertos surpresos e perguntou:

- O que é que você está fazendo aí?

Aquele homem de uniforme em nada se parecia um anjo, mas “não se deve julgar ninguém” – pensei, e disse:

- Estava lhe esperando!!!

O homem disse “hunf” e saiu apressado, resmungando:

- Deve ser mais uma bruxa! Ai que dia!

Fugiu aborrecido o meu anjo e eu continuei na maca até que ele retornasse com mais dois "gabriéis" que me levaram para o quarto. Só fui te ver novamente no dia seguinte. Linda!

Certo, certo! Eu sei que já contei essa história trilhões de vezes pra todo mundo e sempre no dia do seu aniversário, mas é que as mães têm esse direito, o de repetir a mesma história do nascimento de seus filhinhos no dia de seus aniversários, ainda que seus filhinhos já não sejam mais lá tão “inhos” assim... Adoro contar essa história, aliás, adoro contar todas as histórias! E adoro suas reações com as histórias que conto, como esta última da casca de banana rejeitada. Você achou engraçada enquanto eu ainda me espanto com a reação daquele homem, indignado e ofendido por eu ter colocado a casca da banana comprada em outra barraca, na lixeira da barraca dele.

Mas você tem razão, de certa forma, agora que estou aqui em casa, tranqüila e longe daquela feira barulhenta, estou até rindo mesmo da situação.

E dá pra rir desde antes, inclusive, na barraca em que comprei a banana, quase duas da tarde e eu morta de fome e de calor naquela Teresina de cajuínas cristalinas:

- Quanto custa a banana?

- Um e cinqüenta a dúzia.

- Mas eu quero uma só...

Crente que a cabocla ia me oferecer a banana, fiquei surpresa quando ela apreçou:

- Quinze centavos.

Difícil achar quinze centavos dentro dessa bolsa de viajante, mas cavoucando bem lá dentro acabei encontrando uma moedinha de vinte e cinco.

- Fique com o troco – Disse eu “generosa”.

- Quero não. Tome seu troco. – Lá estava eu aprendendo com a vida!

Hoje rio, mas fiquei um bocado atônita com aquele homem tirando de dentro da cestinha de lixo a casca da banana e jogando no chão, com as mãos nos quadris, sotaque nordestino, desafiador.

- Oxente! O que é isso? Onde já se viu uma coisa assim?

E eu parada sem reação. Tão gostosa a banana, tão amiga naquele momento de fome extrema, tão minha depois dos quinze centavos, e aquele homem jogando sua casca com raiva naquele chão tão imundo das ruas do centro de Teresina. Ela não merecia isso! Um fim tão indigno. Tanta gente olhando e eu tão sem reação.

Corri lá dentro das minhas gavetas para encontrar uma saída para minha catatonia e, num rompante de solidariedade com aquela casca rejeitada, me desculpei com o homem, abaixei-me e recolhi do chão, com as duas mãos, os restos mortais da deliciosa banana, com a reverência que merece um corpo morto depois de cumprida sua tarefa nesta vida.

- Você é louca, mamãe!

Sou nada!

Louco é aquele homem incapaz de receber em sua lixeira a casca da banana de outrem e loucos são os médicos que me esqueceram na mesa de cirurgia logo depois que você nasceu – tá certo que você sempre foi assim linda, maravilhosa, apaixonante, delirante, inteligente, cheirosa, amorosa, gostosa...

- Mãe!!!

Tá bom, parei.

P.S. Feliz aniversário, minha amora!