sábado, junho 30, 2007

O Médico e o Monstro

Jogou fora as receitas assim que saiu do consultório. Estava com fome, só podia estar com fome. Não Maria, mas a doutora que a consultara. Não sorria; mal falava. Examinou ouvidos, nariz e garganta e logo sentou para anotar a receita. Maria olhava a médica e via o monstro.

Acordou cedinho, antes do dia raiar e correu para a fila do Posto de Saúde. Tinha que chegar às cinco horas da manhã se quisesse marcar uma consulta com o otorrinolaringologista. Tinha pouca gente e Maria pegou a senha de número sete. Bom, muito bom! Teria sua consulta marcada.

Quinze dias depois, ali estava Maria, desde as nove horas esperando sua vez. Foi a quinta a entregar a ficha à atendente. O patrão tinha cedido a manhã para aquela consulta. Naturalmente, ia lhe descontar o dia, mas não perderia o emprego, afinal, levaria um atestado comprobatório. A doutora chegou às onze.

- Graças a Deus que chegou!

Os velhinhos da fila se animaram quando a atendente informou que, em respeito ao Estatuto do Idoso, estes seriam atendidos antes dos demais. Eram quinze ao todo. Maria foi tomar um café na cantina. Havia tempo de sobra. Catou um pedaço de jornal que encontrou no balcão e leu qualquer coisa a respeito da invasão dos policiais ao Morro do Alemão, no Rio de Janeiro.

- Hunf! – Foi o máximo que conseguiu expressar.

De volta à fila apressou o passo quando viu um lugar vazio. Tarde demais, alguém chegou primeiro. Mas tão rápido quanto sentou, levantou-se novamente. Maria correu e tomou o lugar. Entendeu, então, o motivo de tão rápida desistência de seu antecessor: uma senhora muito pequenina sentada ao lado no banco de pedra da fila de espera fedia muito, mas muito mesmo, tanto que Maria, mesmo com suas narinas fechadas e feridas, conseguia sentir.

Pesou o custo-benefício. Estava cansada depois de duas horas em pé. Preferiu a catinga e passou a ler seu pedaço jornal, tentando não encostar-se à pequena e mal-cheirosa senhora.

- Ainda bem que os idosos vão primeiro! – Pensou. Assim, aquela ao seu lado não se demoraria ali.

Lembrou do metrô de Paris. Não, nunca tinha ido à Paris, mas sua patroa contou que uma vez, na Gare de Saint-Lazare, o metrô chegou com um vagão praticamente vazio, apesar das seis horas da tarde. Todo mundo na estação partiu, então, para ocupar aquele espaço e desfrutar de um pouco mais de conforto. Mas, ao entrarem no vagão, as pessoas tiveram que suportar até a próxima estação o cheiro horroroso de um mendigo e suas sacolas cheias de lixo. Na Estação Liège desceu todo mundo novamente e o vagão seguiu vazio. Certamente, na próxima – Place de Clichy – os tolos tentariam de novo um lugar para sentar no metrô de Paris, às seis da tarde.

- Onde é mais difícil sentar? – Pensou Maria. – No Metrô de Paris às seis da tarde ou a qualquer hora num atendimento de saúde pública no Brasil? - Pouco importava para ela, na verdade, já que nunca iria à Paris e, afinal, já garantira seu assento.

Não demorou mesmo e a velhinha catinguenta foi chamada à consulta. Um alívio para Maria e para os outros ao redor. Um por um, os idosos foram chamados e ela se inquietava no banco. Onze e meia; quinze para meio-dia; meio dia e dez, e nada de chegar a sua vez. Perguntou à atendente quantos faltavam ainda para que ela fosse chamada: Três.

- Pôxa, se eu for rápida, dá tempo de mais um café.

Correu à cantina, mas chegou tarde. O restinho da garrafa térmica estava sendo servido num copo a um freguês. Olhou com tanto desejo para aquele café que o sujeito dono dele virou-se de costas, incomodado com o assédio. Maria se deu conta de si mesma e envergonhou-se. Comeu o bolo de fubá, de cinqüenta centavos o pedaço, a seco mesmo e voltou para a fila.

Foram entrando, uma depois da outra, mais cinco pessoas – Mas não eram três as que faltavam? Desanimava Maria, pensava em ir embora, mas já estava ali há tanto tempo, afinal de contas... Esperaria.

- Maria! – Chamou, finalmente, a atendente.

Entrou e à indicação da doutora, sentou-se na cadeira de exames. Sem uma palavra qualquer, sem um sorriso, um cumprimento, um afago, nada, a médica ia, a cada minuto, se transformando da cura para seu mal na incerteza do próprio mal; do amparo em descaso; da esperança em infortúnio. Maria olhava a médica e via o monstro. Pegou a receita e perguntou:

- O que eu tenho, doutora?

Num tom de extremo mau-humor, rancor e amargura, como se Maria fosse a responsável por suas insatisfações, a médica respondeu:

- Minha senhora, como é que eu posso saber o que a senhora tem antes que me traga esses exames que estão pedidos aí?

- Mas o que a doutora viu nas minhas narinas? Mal consigo respirar de tão fechadas que estão.

- Não vi nada de mais, minha senhora. Já disse que só com os exames. A senhora os faça e traga-os para mim. Próximo!

Maria se levantou muito desanimada. Olhou para as receitas, demoraria mais um mês pelo menos para conseguir o exame pelo SUS e outro para remarcar a consulta.

Uma e meia da tarde.

Jogou fora as receitas assim que saiu do consultório e seguiu para o trabalho ou perderia seu emprego.

- Mas, e o atestado?

domingo, junho 17, 2007

Muito guarnecida!

Fica no meio, não é coisa nem outra, como um filme que não se enquadra: é cinema? Fonema? Metáfora? Nem tanto ao norte, nem a nordeste:

- Que sorte tu me deste! A primeira vez a gente nunca esquece. Padece de saudade.

Agora é tarde, tô frita:

- "Me explica com que pernas vou sair...” Não quero ir.

Não é segredo pra ninguém, mas vou revelar assim mesmo: São Luís (MA) é ilha encantada, de encantados que me guarnecem a todo instante. Sonante, é ilha que canta seu povo que dança. Bem quente. Bacante.

Nos atos deste drama, sorridente, fui eu que guarneci o boi, sou eu a escrava Catirina com todos os seus desejos; fui eu que voei nas asas da matita-pere e desci pelo tronco do Buriti. Tô bem aqui, agora.

E se me leva a vida pela vida afora, como tem que ser, faço desta linha a despedida:

- Guarnicê, tô guarnecida!

sábado, junho 02, 2007

“Poisera” e “Jaera”

A Loba estava aflita e eu ouvia seus latidos perdida no meu mais profundo sono da manhã. O sol já se levantava e eu entreabria os olhos com dificuldade revirando na cama por uns minutinhos a mais entre as cobertas. Mas latia a cadela e cada vez mais alto, cada vez mais aflita, cada vez mais dentro dos meus sonhos:
- Loba! – Gritei.

E pulei da cama atrás do motivo de tanta aflição. Ela estava desesperada, querendo a todo custo entrar na varanda fechada por uma portinhola gradeada de ferro. Da porta da sala, tentei lhe acalmar ao mesmo tempo em que procurava com o olhar o que causava na cadela tanto desespero. Mas não havia nada à vista. Abri a portinhola e deixei que ela mesma me mostrasse a razão de seu alvoroço. Podia ser uma cobra, afinal de contas, ou outro bicho. E era. Ela entrou correndo diretinho no objeto de seu desejo:

- Loba! – Gritei mais alto.


Consegui evitar que ela abocanhasse o pequeno peri
quito azul e branco que arfava num cantinho da varanda, certamente enfartando de medo da predadora. Peguei o passarinho com as mãos. Uma das asinhas quebrada. Deve ter fugido de uma gaiola qualquer e veio parar quase na boca da Loba. Que sina! Ainda bem que nos encontramos, ele e eu, que sempre fui contra pôr os pássaros em gaiolas e fiquei totalmente solidária ao bichinho em fuga. Acalmei a ave, troquei de roupa e fui com ela na loja de animais para comprar comida e algum remédio para a asa quebrada.

Diante da minha intenção de soltar novamente o pássaro depois que tivesse lhe dado a comida e o remédio, o vendedor me alertou que o periquito, por ser um pássaro nascido e criado em cativeiro, não sabe voar, que certamente fora o que se passara naquela manhã, quando, em fuga, tentou voar e acabou sendo abatido por algum predador. Aconteceria novamente se eu o soltasse. Eu teria que manter o pássaro engaiolado para garantir-lhe a sobrevivência.

- Ptz! Pois é, eu que sempre fui contra prender os animais, ainda mais os passarinhos, tão livres que são, fiquei, como se diz, “numa sinuca de bico”, sem saída.

- “Pois é”. Dei-l
he esse nome.

Mas novamente o vendedor – aquele estraga prazeres –, depois de examinar a intimidade do passarinho
, me informou:

- É “Poisera”, fêmea.


Comprei para ela a maior gaiola da loja, esperando diminuir, assim, um pouco da minha angústia de manter o animal enjaulado. Dei-lhe tudo a que tinha direito: banheira, balanço, poleiros de várias formas, casinha, afiador de bico, jiló, enfim... Tudo com o que sonham os periquitinhos. Mesmo assim, a “Poisera” não se sentia feliz. Estava o tempo todo num cantinho da gaiola, não brincava na água, não se balançava no poleiro balançador, nem nada. Certamente, ela queria a sua liberdade, não havia dúvidas. Voltei à loja de animais, com a gaiola em punho, para mais uma consulta com o vendedor.

- Ela precisa de um companheiro. Está se sentindo sozinha.

Caramba! Claro que é isso! Como eu não pensei nisso antes? Mas vou prender mais um passarinho na gaiola?


- Ptz! Agora já era.


“Jaera”. Foi esse o nome que eu dei ao companheiro da “Poisera”, que comprei por alguns reais na loja de animais perto de casa. Levei de volta a gaiolona e o vendedor estava mesmo com a razão: os dois viveram, do jeito deles, felizes para sempre.


“Poisera” tinha uma personalidade muito estranha adquirida talvez depois do trauma
sofrido em sua desastrada tentativa de fuga. Deve ter pensado que, enfim, a liberdade não é para quem quer, mas sim, para quem pode, e ela não podia mais, já que não conseguiria sobreviver em liberdade. Eu olhava para ela e pensava:

- Pra ser livre é preciso saber voar. Acontece isso com as pessoas também, “Poisera”.

Certos dias, em que o trauma vinha-lhe à tona, ela atacava seu manso companheiro e bicava-lhe insistentemente a cabeça como se exigisse dele uma solução para aquela vida prisioneira. “Jaera”, demonstrava generosa compreensão, quando permitia e não revidava, deixando que “Poisera” descarregasse nele toda a sua fúria. Ela não sabia disso, mas ele também não podia fazer nada pela sonhada liberdade. Às vezes, mesmo sabendo que não tinha o direito de interferir, eu abria a portinha da gaiola e tirava o “Jaera” com a mão, acarinhando-lhe a surrada cabeça, até que a brava “Poisera” se acalmasse.

Outras vezes, ela entrava na casinha e ficava ali o dia inteiro, às vezes dois dias. “Jaera” no poleiro esperava pacientemente por sua perturbada companheira.

- Prefiro ela me bicando a cabeça do que enfurnada no quarto deprimida. – Era o que parecia me dizer o periquito.


Eles se acasalavam, eu acho, e ela colocava os ovinhos no ninho, mas não permitia que ninguém chegasse perto e acabava devorando-os antes que nascessem “meus netinhos
”.

Loba também se acostumou a ela e passava pela gaiola totalmente altiva. Devia sentir-se livre diante da prisão dos passarinhos, mas era dona de uma liberdade também limitada não pelas grades de uma gaiola, mas pelo muro de nossa casa.


- O que limita a minha liberdade? Sei eu voar? – Pensei.


Assim foi a vida de “Poisera”. Cada vez que entrava em sua casinha, demorava mais para sair. E todos os dias “Jaera” e eu esperávamos por ela. Desta vez, passou um dia, passaram dois, passaram três e percebi uma tristeza enorme no olhar sublime do jovemJaera”, além das formigas que entravam em fila pela casinha adentro, como abutres.

Pois é: já era! Era, enfim, o fim da história. Eu mesma peguei o corpo da passarinha e
enterrei no jardim, numa cerimônia solene, acompanhada pela gaiolona do “Jaera” e pela cadela Loba, que também estava ao meu lado, alguns dias depois, quando entreguei o periquito e sua “mansão” para que fossem levados a viver no sítio de um amigo.