domingo, dezembro 31, 2006

A samambaia gira e a vida passa

Hoje pela manhã, ainda na mesa do café posta na varanda, olhando o mar deste lugar encantado onde moro, meu marido surpreendeu uma lágrima que saltava de mim:

- O que você tem, querida? Não está bem?

Sim, eu estou bem. A lágrima desceu por meu pai, que morreu este ano e no fato de que vamos entrar 2007 (e todos os outros) sem ele, mas em seguida, me confortei em lembrar que ele viveu plenamente sua vida inteira, ao contrário de milhares de outras pessoas que morreram e morrem todos os anos de causas muito menos “naturais” do que o câncer que devastou o corpo do meu pai – se é que se pode dizer que câncer seja uma “morte natural”, talvez fosse mais correto dizer que esta é uma “morte comum”. Mas, então, vou concluir que, atualmente, muitas outras são também “mortes comuns”, tais como as causadas por assassinatos, agressões, estupros ou genocídios.

O vento vindo do mar fazia girar a samambaia pendurada. No céu, um dirigível invadia o cenário e corrompia os sons naturais das ondas, dos pássaros, das folhas ao vento...

- Não gosto das mortes em massa. – Disse ao meu marido. – Nos fazem parecer frágeis demais. Uma onda mata duzentos e cinqüenta mil pessoas. Somos meio formigas esmagáveis. Eu não mato formigas, nem mato pererecas, nem mato gongolos (aquela lagartinha preta que come baratas. Argh!).

- Um homem mata milhões de outros! – lembrou meu marido, que é judeu.

A samambaia girava e meu pensamento também. Saddam Hussein foi enforcado e Lula lamentou, duvidou da justiça de seu julgamento. Vamos entrar 2007 com Lula no poder porque ele foi eleito democraticamente. Saddam foi enforcado em seu país cumprindo uma sentença que ele mesmo instituiu, ainda que de forma nem um pouco democrática.

Vamos entrar 2007 sem Saddam Hussein. Ufa! Ainda que alguns sugiram ter sido seu enforcamento uma questão pessoal dos Bushes, a morte do ditador iraquiano foi a merecida punição a um dos mais cruéis assassinos da humanidade.

Pode não ter sido o fim dos esmagadores de formigas, mas é, no mínimo, menos um. E a samambaia continua girando na varanda.


Feliz Ano Novo, sem Saddam!

sábado, dezembro 23, 2006

Amigo Oculto; Presente Secreto

ou "A coragem que nos falta"

Margareth, que trabalhava todos os dias e era sozinha, ainda não tinha se dado conta de que o Natal estava chegando. Alguns colegas de trabalho haviam falado em amigo oculto e ela acabou comprando um perfume para o seu. No dia combinado, véspera do Natal, pela manhã, seu amigo oculto (que permaneceu oculto) lhe deu um presente. Era uma pacotinho pequeno, que parecia ter sido embrulhado em casa. Margareth achou melhor deixar para abri-lo à noite. Certamente seria seu único presente...

Alheia às brincadeiras dos amigos, Margareth guardou na bolsa seu pequeno embrulho e foi para casa. No caminho passou no mercado e comprou presunto. Margareth adorava presunto. Comprou também uma garrafa de vinho. Na noite de Natal, ninguém nunca apareceu na sua casa, mas quem sabe naquele ano.... Dessa forma, seria bom ter algo para oferecer à visita. Acabou incluindo um bolo de nozes às compras.

Ao piscar das luzes natalinas, Margareth, que já tinha arrumado sua mesa, sentou-se e apanhou o embrulho. Frente ao seu pacotinho, pensou:

- Este é o meu presente de Natal. Seja lá o que for, alguém deu ele a mim. É o meu presente.

Margareth foi desembrulhando devagar, tirou o laço, o durex do cantinho, puxou a abinha, deu uma olhadela para dentro. Não identificou o objeto. Rasgou de todo o papel e viu cair sobre a mesa, tinindo como um sino, uma chave. Ainda preso na folha de embrulho, um pequeno papel com um endereço completava sua surpresa.

Naquela noite, o bolo e o vinho, por mais uma vez, permaneceram intactos sobre a mesa. Acompanhados do inusitado presente, ali ficaram por três dias.

Margareth não entendeu. Havia dado um perfume. Poderia ter ganhado um também. Ou uma meia, um batom, até mesmo um sanduíche de presunto a teria feito feliz. Mas deram-lhe uma chave... E um endereço. Ela nunca teria coragem de ir até lá.

Nos dias seguintes às festas daquele ano, e nos meses seguintes e durante os anos em que trabalhou naquela empresa, tentou em vão descobrir seu amigo oculto. Nunca mais participou da brincadeira e nunca teve coragem de dizer aos colegas o que havia ganhado naquela manhã. Daquele ano em diante, em todas as Noites de Natal, acompanhados de vinho e bolo, na mesa de Margareth estavam a chave e o endereço. Mas lá não ia. Faltava-lhe coragem.

Passaram dez anos, Margareth se aposentou. Continuava sozinha, passando seus natais com a chave e o endereço, o vinho e o bolo, todos intactos.

Um dia, véspera de Natal, Margareth, decidida, não arrumou sua mesa. Sentia-se velha demais para ter coragem e também para não ter. Naquela noite, não sentou-se para apreciar sua chave, pelo contrário, colocou-a na bolsa, junto com o endereço, o vinho e o bolo, e seguiu em busca daquele rumo.

Chegou a uma vila de casas. A do endereço era simples, com uma calçada na frente e pequena varanda. Estava abandonada. Margareth respirou e olhou por um minuto a chave em suas mãos. Pensou em voltar, chegou a virar-se, mas retornou e abriu a porta. Afinal, já estava ali.

Não havia ninguém na casa, apenas uma lâmpada fraca, a do abajur na sala, clareava o ambiente. Margareth aproximou-se dela. Em cima da mesinha, um bilhete.

"Margareth,

Durante todos estes anos eu esperei que você chegasse para o Natal. Passei todos eles só, assim como você. Fui seu amigo oculto e você, minha amada secreta. E a nós dois faltou coragem.

Hoje é tarde, meu amor! Se eu não estou aqui, é porque não estarei nunca mais."

Margareth apagou o abajur e voltou para casa.

Naquela noite comeu o bolo e tomou o vinho.

Desejo a todos, coragem para viver a vida, toda ela. Feliz Natal!

domingo, dezembro 10, 2006

Qual é a sua praia?

Sim, porque cada um tem a sua, não é? Estamos sempre ouvindo alguém afirmar: - Essa é a minha praia! Ou: - Essa não é a minha praia! Entretanto, há aquelas praias que são a praia de todo mundo. Ponta Negra é assim.

Tem gente de tudo quanto é lugar do mundo por aqui. Quando cheguei em Natal, há pouco mais de dois meses, enquanto procurava um local para permanecer esse tempo, com quem estive me dizia: - Ponta Negra não serve, porque só tem gringo e puta.

As putas não vi nenhuma por aqui, mas gringo tem de montão.

Apesar da colocação preconceituosa, acabei mesmo num flat em Ponta Negra. Tá certo que tudo por aqui custa três vezes mais caro do que em qualquer outro lugar do Rio Grande do Norte, afinal gringo paga em dólar e euro e o que custaria um real, imagine o leitor, passa a custar um dólar, um euro. Como um é sempre um e é barato em qualquer lugar, tanto faz cobrar um real como um euro. Só que para mim ou qualquer outro brasileirinho de outras terras por aqui, esse pequeno detalhe faz uma grande diferença.

Para fazer as unhas, por exemplo, aqui paguei doze reais pé e mão, em São Miguel – lá naquela terra de doidos – paguei somente cinco, no salão da Graça, que é uma gracinha de pessoa, do alto de seus metro e dez de altura, conseqüência dos inconseqüentes amores entre seus parentes antepassados, mas isso foi outra crônica... (leia Casa de Doido, abaixo).

Em Ponta Negra tudo é caro mesmo. Paga-se por tudo por aqui e todo mundo dá um jeitinho de ganhar dinheiro alugando ou ensinando qualquer coisa. Aqui, o cidadão do mundo paga para aprender o surf de água e o de areia, nas dunas – menos a do Careca que está interditada, porque estava ficando cada vez mais careca com o desce-desce das pranchas, papelões ou o que mais eles usavam para escorregar naquele tobogã natural.

Apesar de ser potiguar de nascença, sou carioca de jeito e com esse jeito de “essa é minha praia” que o carioca tem em qualquer praia do mundo, cheguei mandando. Vi a areia cheia de guarda-sóis e espreguiçadeiras, dessas de beira de piscina. Me animei toda:

- Oba! Quero aquela ali que é a maior.

Fui logo me aboletando na cadeira. Larguei a canga pra lá e me preparava para lagartear ao sol quando chegou o dono da bola e cantou a parada, no mais carioquês que um potiguar pode falar para ser bem entendido:

- É dérreal.

Olhei para o lado para me certificar de que era comigo que falava o sujeito com um cigarro no canto da boca e a pressa de um dono de bar com a casa cheia.

- Heim? – Perguntei incomodada procurando o que ele estava tentando me vender.

- É dérreal pra sentar.

- Como é que é? Dez reais pra sentar? Mas e se eu quiser tomar uma cerveja?

- É dérreal só pra sentar, o consumo é à parte.

- Ah, é? E quanto custa a latinha de cerveja?

- Trêrreal.

- E a água de coco?

- Dois e cinqüenta.

- Tá maluco!

Me levantei para ir embora ao mesmo tempo em que chegava um casal de franceses e o sujeito do cigarro lhes oferecia as cadeiras ao lado. A francesinha, que arriscava aqui e lá uma palavra numa língua enrolada parecida com o português, informava ao seu companheiro:

- Oh ! Ce n’est pas cher, il n’est pas cher. Non ser caro non.

Fiquei incrédula ouvindo a francesa achar barato os preços cobrados. Sentaram felizes e eu ali pensando: - Ou eu sou muito pobre ou esses turistas são muito otários! – Na verdade eu sou, e a Graça de São Miguel é, e todos os brasileiros – ou quase – somos, mesmo muito pobres. Mas que aqueles turistas são também muito otários isso são, e digo por quê. Eu peguei minha canga e estiquei na areia, num dos poucos espaços livres das barracas de aluguel, esperei menos de dois minutos e passou uma carrocinha vendendo cerveja: um e cinqüenta a latinha. “Bom” – pensei – “melhor perguntar se é real, dólar ou euro”. Mas era bem real mesmo.

Tomei minha cervejinha por um e cinqüenta enquanto os gringos gastaram treze, pelo menos.

Bem, como eu estava dizendo, cada um tem sua praia, mesmo que a praia seja a mesma. Ali, ao lado da minha latinha, confabulando com esse monte de gente que mora em mim, ouvi o forró que tocava no carrinho de som dos vendedores de Cds. O menino parou a alguns metros de mim numa barraca que o solicitava, no mesmo momento, um casal da barraca se levantou e largou uns passos de dança pela areia, num ritmo bem sacolejado e chamando a atenção não só de mim, mas de todo mundo ali por perto. Como uma câmera de cinema, fui abrindo minha visão lentamente em panorâmica, passando por duas velhinhas, bem velhinhas, que, ao lado de tantas outras pessoas que desfilam naquela pista internacional, caminhavam pela beira do mar, uma delas tentando se alongar com os dois bracinhos esticados para o alto e vergando para um lado e para o outro. Para cada lado que jogava os braços, eu pensava: - Vai quebrar! – E era grande alívio quando percebia que ela conseguia retornar à posição inicial, menor somente que minha agonia quando ela vergava para o outro lado: - Agora quebra!

Ampliando mais um pouco meu ângulo de visão, na beiradinha d’água, um instrutor bonito e bronzeado preparava dois branquelos desengonçados para subirem pela primeira vez numa prancha de surf. Abrindo de vez a panorâmica, muita gente passando pra lá e pra cá, de todas as cores, com todo tipo de biquínis e sungas de banho, vários com a bandeira do Brasil – que coisa mais brega! Só podem ser americanos.

E vendedores de tudo o que se possa imaginar, desde carrocinhas de milho-verde, espetinhos de camarão, água de coco, castanhas, salada de frutas, bebidas diversas, até butiques motorizadas com direito a modelos desfilando pela praia, passando, ainda, pelos inúmeros artistas e artesãos de todo jeito, vendendo tudo o que é arte. Sem contar aqueles que, não tendo o que vender ou ensinar, pedem esmolas com estilo próprio e cheios de histórias, como o senhor sem pé que me abordou:

- Bom dia, minha amiga! Que tal ajudar este velho veterano de guerra que perdeu o pé lutando pela nossa pátria?

E atrás dessa introdução, o homem, que não devia ter mais do que 65 anos (ou seja, quatro anos em 1945), fazia um extenso relato sobre as batalhas das quais participou. Interessada mais no personagem do que nas mentiras que alardeava, eu até teria lhe dado um pagamento por sua performance se eu não tivesse comigo apenas o suficiente para a cervejinha que já findava. Quando lhe disse que estava dura e que não poderia ajudá-lo, o velho se revoltou:

- Então, eu lhe salvo a vida e a pátria e é essa a recompensa que recebo?

Me pegou de surpresa, comecei a rir, e daí o sujeito se enfezou mais ainda. Começou a praguejar e amaldiçoou até a minha quarta geração, enquanto escrevia qualquer coisa num caderno que levava consigo. O velho saiu andando e resmungando, enquanto eu recolhia também a minha canga.

É hora de voltar pra casa. Essa praia não é minha.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Casa de Doido

- Por ali todo mundo tem um na família.

- Quase todo mundo; na minha não tem não.

Frase popular, que eu julguei fosse somente folclore, diz o seguinte: “Toda família tem seu doido”. Olho pr’um lado e pro outro e me pergunto:

- Tem um doido na minha família?

Num momento me convenço que não tem não, mas em seguida, penso:

- Quem será o nosso doido? Quem será que mora na nossa Casa de Doido?

Essa aí da foto estava lá em Coronel João Pessoa (RN), pertinho da fazenda “Quintos”, que hoje pertence aos herdeiros do próprio Coronel. E havia outras, várias por lá.

- Tem uma ruma! – Respondeu-me Alguém. – Ói, ali tem ôtra... Ói ôtra ali.

- Mas tem tanto doido por aqui?

- Tem uma ruma! Tem uma famí’ali que tem cinco. Um de cada mudelo.

Um desses “mudelos” era Onório de Chico Lulu, que foi mandado para a Casa de Doido porque atravessou nu a cidade com dois baldes pendurados num pedaço de pau carregado nos ombros. Foi assim até o açude e, na volta, com os baldes cheios d’água, foi mandado para a Casa de Doido.

- Tem deles que não saem nunca mais! – Informou Alguém.

Foi assim com o Marcelino Pedreiro, que não cansava de repetir para quem passasse:

- Avia, minino, deixe d’arrumação!

Seguia seu “cristo” por onde ele fosse repetindo daquele jeito bem rapidinho:

- Avia, minino, deixe d’arrumação! Avia, minino, deixe d’arrumação! Avia, minino, deixe d’arrumação! Avia, minino, deixe d’arrumação!

Acho que ele queria era endoidar a cidade inteira. Mas a cidade inteira se reuniu e decidiu o destino de Marcelino. Esse saiu da Casa de Doido pra "Casa de Morto" – que dava quase no mesmo.

Voltando de Quintos, passamos em frente da casa de Neto de Carmo, morador da fazenda. A casa dele é de tijolinhos aparentes, mas muito simples e rústica, daquelas que ainda usam a “casinha” para as necessidades. Essa “casinha”, um dia, ficou cheinha de jararacas que fizeram um ninho lá na fossa e provocou um vexame danado em muita gente, cada vez que uma tentava beliscar a bunda do cidadão. Vários sairam correndo nus da “casinha” de Neto de Carmo, correndo das jararacas. Esses foram perdoados e não foram pra Casa de Doido não.

Neto de Carmo, que era casado com sua sobrinha legítima, tinha duas filhas e as duas endoidaram. Como era muito apegado às “meninas” e elas brigavam muito, ele construiu duas Casas de Doido uma de cada lado da casa, geminadas a ela. Cada uma com apenas uma porta e um buraquinho para entregar as refeições às filhas.

Leilane e Lidiane eram doidas socializadas e não ficavam muito tempo lá dentro não. Quando uma delas sentia que estava pirando, ia pra sua Casa de Doido com suas próprias pernas e ali permanecia até que se julgasse social novamente.

Quando passamos, de dentro do nosso quatro-por-quatro climatizado, ouvimos Lidiane gritar pelo buraco da comida:

- Ei, venh’aqui! Ei, venh’aqui!

Ao ver dentro daquele pequeno retângulo, o reflexo das lentes dos óculos e o brilho do sol nos cabelos brancos da senhora, pedi que parassem o carro, mas Alguém alertou:

- Pare não que ela xinga!

- Xinga?

- Xinga. Você chega ali no buraco e ela só faz xingar, só faz xingar.

Deixamos Lidiane no seu inferno e seguimos. O sol rachando lá fora e eu intrigada. Um lugar tão bonito, com uma luminosidade incrível, um lugar que conserva as mais antigas tradições nordestinas, uma região de serra onde mesmo nesta época de estiagem, consegue manter o encantamento de seus vales e a água de seus açudes, um lugar desses onde as pessoas deveriam estar sempre de bem com a vida, entretanto, apresenta esse índice tão elevado de maluquices, dentro e fora das Casas de Doido.

Alguém explicou que não era uma questão social ou ambiental, mas sim de ordem genética, causada pelo grande número de casamentos entre parentes. São primos que se casam entre si, e seus filhos que se casam com os primos, que se casam com tios, que casam novamente com primos e por aí afora. Isso há alguns séculos. Essas deformações genéticas, entretanto, não se deram apenas neurologicamente não, há, ainda, famílias inteiras com deformações físicas causadas pelo mesmo motivo. Alguns geneticistas, entretanto, discordam desta tese.

No fim do dia, repousamos assistindo ao pôr-do-sol no Açude do Jacó, em São Miguel, do oeste. Esse aí que divido com vocês.