terça-feira, outubro 14, 2008

A escritora e o economista

O começo foram Letras. Eu era A, você B, eu C, você D. Brincávamos com elas e elas conosco. Poema vai, poema vem. Histórias de nós que vivemos entre vogais, as tais mais importantes, as nobres, as jovens, abertas para o mundo, como nós. Juramos amor eterno, juramos nunca nos separármos... Delas, das Letras.

E ainda fazíamos do J o guarda-chuva e do E a escada do escorregador A, quando passou por nós o furacão dos vinte anos. Nunca mais te vi. Não sei por onde andei, mas elas vieram atrás de mim, em música, em drama, em tela, e apareciam em tudo o quanto eu tocava. Como Midas que ao invés de ouro, Letras.

Ainda estão comigo, todas as vinte e três e mais as agregadas. São poucas, porém, diante dos brancos que se enrolam entre meus cabelos cacheados. Aliás, tenho perdido os cachos pelo tempo, pela vida, como perdi você e você, as Letras.

A história que você conta hoje não se forma mais em Letras, mas em números. Eu estranho falar de sentimentos em números: eu sou o 1, você é o 2 e o resto é infinito, coletivo demais para ser lírico; transitivo demais para ser amor. Hoje você conta o dinheiro do mundo. O universo de Letras é finito pra você, apenas um conjunto na infinitude dos arranjos numéricos.

Conto histórias porque imagino infinito como números, e se não encontro palavras para dizer é porque o momento pede silêncio e o silêncio muitas vezes é pura poesia. Não há palavra que me fuja, há as palavras que protejo, que não digo, que reservo. Os números te fogem às vezes?

Posso parecer um pouco magoada com essa, digamos, deslealdade, mas afinal estivemos mais tempo longe do que perto. Vi que os brancos também te invadiram, como te invadiram os ternos, as gravatas. Temos, afinal, cada um a vida que nos é possível. E o tempo leva, ainda que eu o fraseie e você o equacione, ainda que eu o conte em Letras e você em números. O tempo nos leva e não nos trará de volta nunca mais.

12 comentários:

Anônimo disse...

Se as letras fossem de fato números, nossas rimas seriam equações sem respostas possíveis, pois entre versos e contas, nos achamos e nos perdermos, seja num gesto, no silêncio, numa fotografia antiga ou no papiro esquecido. O branquear da vida sempre se transforma na página enigmática, livre e convidativa, para que o poema perfeito seja criado e a vida reinventada. Muito lindo o texto.

Maria disse...

Nossa Morgana! Lindíssimo. Acho que meu preferido até aqui...bjs

José Calvino disse...

Querida Morgana,
Ler "A escritora e o economista", é
mergulhar na leitura das letras e dos números: "... E o tempo leva, ainda que eu o fraseie e você o equacione, ainda que eu conto em Letras e você em Números. O tempo nos leva e não nos trará de volta nunca mais."
Gosto sempre dos seus contos. Na verdade, você é uma grande contista.
Parabéns, escritoramiga.
Beijos do,
José Calvino

MARIAESCREVINHADORA disse...

Letras e números são linhas paralelas, andam lado a lado mas não há chance de encontro.
Adorei o texto, Morgana.
Beijos,

Conceição

Vitor Bricio disse...

Letras e números são precisos pra explicar essa furacão que invade a gente essa hora. Esse tempo é nosso. Nós, apaixonados. "And in the end the love you take is equal to the love you made". Amo você morg. Sou fã, filho, amigo...Qualquer porra minha! " "Não importa: São bonitas as canções" Com esse ponto. O tempo ta aqui, só que em outra frequencia.

Vitor Bricio

Efemeridades de Sophia disse...

Incrível como todos os outros!
Sempre bom ler você.
"...o momento pede silêncio..."

Bju

Ventura Picasso disse...

Com todos os signos a solta, a soma, a divisão e a reticência é a lógica. Porém, a vírgula e o ponto são unissex, comum de dois. Na álgebra e no alfabeto. É a manifestação da tereceira margem. Deixá-la fora do contexto é uma contradição um preconceito.
Vc quando escreve é iluminada por uma sensibilidade e inteligência inigualável.

Nathi disse...

Acho que nunca me achei realmente nesse mundo de letras e números.Será que é possivel se achar?
Não escrevo bem,nem conto bem..mas sei do que gosto e gostei deste texto
=]
Ps:foi o primeiro seu..com certeza lerei mais!

*LIS disse...

Esse texto e de uma sensobilidade sem tamanho!
Havia tempos que eu nao passava por aqui, mais de um ano, na verdade. Voltei e fico feliz por te-lo feito.
Sua escrita e como vinho.


ps: E fico extremamente lisonjeada em ver o link do Musicando por ai ainda. Penso em voltar com ele, logo.

larissa disse...

belíssimo.

farfalla disse...

Nossa!! Muito lindo seu texto!
Parabéns!! Identifiquei-me com essa poesia em prosa, muito bem escrito!!

Será que posso acompanhar seu blog? rs

Acabo de criar um pra também divulgar meus textos. Se interessar, visite: poemasquefizpramim@blogspot.com

Abraços e parabéns pelo seu dom!

Unknown disse...

Lindo texto, Morgana! Gosto de todos, mas esse...
Bjks,
Wanner