Tem vez que é assim mesmo. Tem tudo pra ser um diazinho comum, e quando já está quase confirmando sua natureza morna, desanda igual clara batida do lado avesso.
Outro dia acordei com o telefone tocando. Era minha mãe dizendo que havia conhecido mais uma amante do meu marido. Uma vizinha minha, vejam vocês... Suspirei, já foram tantas afinal de contas, e ele nem é mais assim tão meu marido, apesar da minha mãe achar que casamentos são para sempre. Levantei, e com a carinha amassadinha amassadinha dei uma olhadela no espelho antes de lavar o rosto. Não gosto de fazer isso, olhar no espelho assim tão de manhã, sabe... Mas por uma dessas inomináveis razões que os psiquiatras usam para nos diagnosticar masoquistas, olhei. Eu devia estar impressionada, assim como o mundo, com o talento da Susan Boyle (lê-se boiâl) porque o que vi refletida foi a mesma carinha amassada da cantora. Abstraí e segui o dia, com aquele arrependimentozinho na alma. Mas é bom pra aprender a não olhar no espelho antes de estar com o cabelo penteado e com o batom a postos.
Segui o dia como quem segue a fila. Cumpri minhas tarefas: trabalhei, fui pra faculdade em Todos os Santos (pra lá do Méier), fiz minhas provas com esmero – eu estudo pra caramba! – e na hora do recreio (sou da época do recreio e da merenda) tomei meu café-com-leite e conversei com os coleguinhas.
Tudo ia assim, como eu disse, morno, arrastado, quase doído, como uma fila mesmo. Um desses coleguinhas começou, então, a fazer de mim elogios que inchariam até o ego de uma barata. E eu, baratosa kafkiniana, inchando-me: “a senhora tem uma postura isso; tem uma voz aquilo; a senhora é muito inteligente; muito culta...”
- Outro dia estava até comentando com uma amiga minha, a Lucinha, a senhora conhece? Do sexto período? Então, a gente tava concordando que a senhora é a cara daquela artista... Como é o nome dela? Esta que está fazendo um sucessão...
- Nicole Kidman? – Respondi esperançosa.
- Michelle Pfifer? – A esperança é a última que morre.
- Nada... Esta aí que está em tudo que é lugar.. Susan...
- Sarandon? Chutei com desespero.
- Boyle!!!!
Olhei no fundo do olho do coleguinha e fiquei imaginando o que ele estava fazendo naquela manhã em que minha cara amassadinha amassadinha refletia a imagem da cantora. Seria ele o espelho do meu banheiro que me seguiu até a faculdade?
No meio das gargalhadas dos colegas eu amarelava e sorria com aquele sorriso de quem jura vingança. Mas não sou assim vingativa. A vizinha sabe bem disso, por isso agarra meu (quase nem mais) marido.
É verdade que me esforço pouco para ser linda, mas...
- Qual é mesmo o seu CR? – perguntei com maldade ao magrelo espinhento.
Por qualquer motivo, me levantei abraçada ao meu café-com-leite e fui procurar outro banco naquele pátio enorme do campus.
Ouvindo Janis Joplin no meu moderno player eu pensava em como a individualização da audição musical deu liberdade às pessoas. Veja só, eu ali no pátio onde a música padrão deve ser um pop ou padre brasileiro, ouvindo minha rebeldia traduzida nos gritos maravilhosos da ruiva sardenta.
As lágrimas chegavam a escorrer na face de emoção de me sentir mais Janis Joplin do que Susan Boyle. Afinal, que importa o que pensa o espinhento e sua amiga do sexto período, ou mesmo o meu espelho matutino, ou minha mãe com seu casamento eterno, ou as amantes do meu (também não queria) marido, ou ele próprio, se em meus ouvidos explode o rock and roll?
Os dias mornos são chatos demais. Mas este já estava acabando.
Saí voada ao final da aula. Queria voltar pra casa e para isso tinha que conseguir estar na barca a tempo de pegar o último ônibus do outro lado da Baía de Guanabara. Varei seguindo a linha do trem até a estação do Méier, subi os degraus parados da escada rolante – nunca funciona essa porra! -, desci do outro lado e entrei no terminal pra lá da estação. O ônibus que eu queria estava ali prontinho pra sair esperando por mim, desde que eu me apressasse.
Eu já contei que sou dessas pessoas que caem? Dessas que engancham? Que derrubam tudo em loja de quinquilharia? Pois sou dessas.
Ao descer o degrau da calçada para alcançar o outro lado da estação, me dei conta que entrava um ônibus no terminal e resolvi recuar para esperá-lo passar. Mas sei lá por que cargas d´água, o tal degrau da calçada saiu do lugar e meu pé não conseguiu encontrá-lo no recuo. O tornozelo virou de um jeito que meu corpo desequilibrou e minha sacola de livros caiu esparramada no asfalto. Eu fui logo em seguida. Por sorte ainda tenho joelhos e a cabeça que quase virou panqueca debaixo da roda do ônibus que parou a metro e meio dela.
Nem percebi a proximidade. Mas alguém fez questão de me apontar:
- Foi Jesus que te salvou minha irmã!!!! Glória a Deus! Foi Jesus que te salvou!
A doceira da banca gritava enquanto corria pra me acudir. Não demorou pra juntar gente em volta enquanto o motorista do ônibus esbravejava por minha imprudência, como se eu tivesse tentado me matar. Disse que eu ia arruinar a vida dele, que eu devia pensar nisso antes de me matar. Se eu queria me matar, então eu devia dar um tiro no ouvido... Enfim. Atordoada, eu só conseguia repetir:
- Moço, eu caí. Eu caio sempre...
E quando o coletivo que eu precisava para alcançar a barca acelerou indicando que ia partir, eu aproveitei para fugir:
- Eu preciso pegar aquele ônibus, gente!
- Mas a senhora ta sangrando. Vamos pro hospital.
O sangue vinha do meu joelho esfolado, mas eu já me acostumei. Cada vez que caio, fico meses sem poder usar saia com uma feridona no joelho. Como eu disse, ainda bem que tenho joelho.
Subi no ônibus com a ajuda da trocadora que se continha pra não rir, enquanto lembrava:
- Foi um estabacão...
Enfiei a Janis Joplin pelos ouvidos e me aninhei junto a uma janela com o olhar distante, a calça rasgada e a cabeça doendo. Nesses momentos a gente se sente medonha e eu não estava me sentindo diferente não. Mas ia conseguir embarcar e voltar pra casa.
A Praça XV estava lotada com o “Viradão Carioca” e a barca apitando a saída. Não pensei duas vezes e saí correndo no meio da multidão (com licença, moço!) mancando e largando sangue do joelho pelo caminho até alcançar a embarcação abarrotada de gente. Arrumei um cantinho junto a uma janela (dá licença, moço!) e pude respirar um pouco antes de me sentir tonta. Achei que era o movimento da barca, mas estava rodando demais e acabei desmaiando. E ainda não acordei.