segunda-feira, junho 08, 2009

Tem dias que a gente morre

Tem vez que é assim mesmo. Tem tudo pra ser um diazinho comum, e quando já está quase confirmando sua natureza morna, desanda igual clara batida do lado avesso.

Outro dia acordei com o telefone tocando. Era minha mãe dizendo que havia conhecido mais uma amante do meu marido. Uma vizinha minha, vejam vocês... Suspirei, já foram tantas afinal de contas, e ele nem é mais assim tão meu marido, apesar da minha mãe achar que casamentos são para sempre. Levantei, e com a carinha amassadinha amassadinha dei uma olhadela no espelho antes de lavar o rosto. Não gosto de fazer isso, olhar no espelho assim tão de manhã, sabe... Mas por uma dessas inomináveis razões que os psiquiatras usam para nos diagnosticar masoquistas, olhei. Eu devia estar impressionada, assim como o mundo, com o talento da Susan Boyle (lê-se boiâl) porque o que vi refletida foi a mesma carinha amassada da cantora. Abstraí e segui o dia, com aquele arrependimentozinho na alma. Mas é bom pra aprender a não olhar no espelho antes de estar com o cabelo penteado e com o batom a postos.

Segui o dia como quem segue a fila. Cumpri minhas tarefas: trabalhei, fui pra faculdade em Todos os Santos (pra lá do Méier), fiz minhas provas com esmero – eu estudo pra caramba! – e na hora do recreio (sou da época do recreio e da merenda) tomei meu café-com-leite e conversei com os coleguinhas.

Tudo ia assim, como eu disse, morno, arrastado, quase doído, como uma fila mesmo. Um desses coleguinhas começou, então, a fazer de mim elogios que inchariam até o ego de uma barata. E eu, baratosa kafkiniana, inchando-me: “a senhora tem uma postura isso; tem uma voz aquilo; a senhora é muito inteligente; muito culta...”

- Outro dia estava até comentando com uma amiga minha, a Lucinha, a senhora conhece? Do sexto período? Então, a gente tava concordando que a senhora é a cara daquela artista... Como é o nome dela? Esta que está fazendo um sucessão...

- Nicole Kidman? – Respondi esperançosa.
- Não, não... Aquela...
- Michelle Pfifer? – A esperança é a última que morre.
- Nada... Esta aí que está em tudo que é lugar.. Susan...
- Sarandon? Chutei com desespero.
- Boyle!!!!

Olhei no fundo do olho do coleguinha e fiquei imaginando o que ele estava fazendo naquela manhã em que minha cara amassadinha amassadinha refletia a imagem da cantora. Seria ele o espelho do meu banheiro que me seguiu até a faculdade?

No meio das gargalhadas dos colegas eu amarelava e sorria com aquele sorriso de quem jura vingança. Mas não sou assim vingativa. A vizinha sabe bem disso, por isso agarra meu (quase nem mais) marido.

É verdade que me esforço pouco para ser linda, mas...

- Qual é mesmo o seu CR? – perguntei com maldade ao magrelo espinhento.

Por qualquer motivo, me levantei abraçada ao meu café-com-leite e fui procurar outro banco naquele pátio enorme do campus.

Ouvindo Janis Joplin no meu moderno player eu pensava em como a individualização da audição musical deu liberdade às pessoas. Veja só, eu ali no pátio onde a música padrão deve ser um pop ou padre brasileiro, ouvindo minha rebeldia traduzida nos gritos maravilhosos da ruiva sardenta.
As lágrimas chegavam a escorrer na face de emoção de me sentir mais Janis Joplin do que Susan Boyle. Afinal, que importa o que pensa o espinhento e sua amiga do sexto período, ou mesmo o meu espelho matutino, ou minha mãe com seu casamento eterno, ou as amantes do meu (também não queria) marido, ou ele próprio, se em meus ouvidos explode o rock and roll?

Os dias mornos são chatos demais. Mas este já estava acabando.

Saí voada ao final da aula. Queria voltar pra casa e para isso tinha que conseguir estar na barca a tempo de pegar o último ônibus do outro lado da Baía de Guanabara. Varei seguindo a linha do trem até a estação do Méier, subi os degraus parados da escada rolante – nunca funciona essa porra! -, desci do outro lado e entrei no terminal pra lá da estação. O ônibus que eu queria estava ali prontinho pra sair esperando por mim, desde que eu me apressasse.

Eu já contei que sou dessas pessoas que caem? Dessas que engancham? Que derrubam tudo em loja de quinquilharia? Pois sou dessas.

Ao descer o degrau da calçada para alcançar o outro lado da estação, me dei conta que entrava um ônibus no terminal e resolvi recuar para esperá-lo passar. Mas sei lá por que cargas d´água, o tal degrau da calçada saiu do lugar e meu pé não conseguiu encontrá-lo no recuo. O tornozelo virou de um jeito que meu corpo desequilibrou e minha sacola de livros caiu esparramada no asfalto. Eu fui logo em seguida. Por sorte ainda tenho joelhos e a cabeça que quase virou panqueca debaixo da roda do ônibus que parou a metro e meio dela.

Nem percebi a proximidade. Mas alguém fez questão de me apontar:

- Foi Jesus que te salvou minha irmã!!!! Glória a Deus! Foi Jesus que te salvou!

A doceira da banca gritava enquanto corria pra me acudir. Não demorou pra juntar gente em volta enquanto o motorista do ônibus esbravejava por minha imprudência, como se eu tivesse tentado me matar. Disse que eu ia arruinar a vida dele, que eu devia pensar nisso antes de me matar. Se eu queria me matar, então eu devia dar um tiro no ouvido... Enfim. Atordoada, eu só conseguia repetir:

- Moço, eu caí. Eu caio sempre...

E quando o coletivo que eu precisava para alcançar a barca acelerou indicando que ia partir, eu aproveitei para fugir:

- Eu preciso pegar aquele ônibus, gente!

- Mas a senhora ta sangrando. Vamos pro hospital.

O sangue vinha do meu joelho esfolado, mas eu já me acostumei. Cada vez que caio, fico meses sem poder usar saia com uma feridona no joelho. Como eu disse, ainda bem que tenho joelho.

Subi no ônibus com a ajuda da trocadora que se continha pra não rir, enquanto lembrava:

- Foi um estabacão...

Enfiei a Janis Joplin pelos ouvidos e me aninhei junto a uma janela com o olhar distante, a calça rasgada e a cabeça doendo. Nesses momentos a gente se sente medonha e eu não estava me sentindo diferente não. Mas ia conseguir embarcar e voltar pra casa.

A Praça XV estava lotada com o “Viradão Carioca” e a barca apitando a saída. Não pensei duas vezes e saí correndo no meio da multidão (com licença, moço!) mancando e largando sangue do joelho pelo caminho até alcançar a embarcação abarrotada de gente. Arrumei um cantinho junto a uma janela (dá licença, moço!) e pude respirar um pouco antes de me sentir tonta. Achei que era o movimento da barca, mas estava rodando demais e acabei desmaiando. E ainda não acordei.

segunda-feira, março 30, 2009

Os olhos verdes de Rosário

Rosarinho mora bem ali virando a esquina, naquele sobrado ao lado da mercearia de Nôco de Zefa, a gorda. Mas tudo está muito triste por lá e confuso. Tem uma multidão de gente e bicho, tudo parado na frente da casa de Rosarinho. Dona Socorro morreu hoje de manhãzinha. Souberam pelo canto do galo que estava diferente, meio choroso. Quando Rosarinho ouviu aquele cocorocó chocho correu tateando até o quarto da mãe, certa de sua passagem.

Ninguém gostava muito da viúva. Diz o povo que ela sempre foi meio doida daquele jeito, esquisita demais. Os pais dela, avós de Rosarinho eram primos “legítimos de Braga”, por isso a bicha endoidou cedo: cismou que Rosarinho não podia abrir os olhos nunca porque verdes como são alguém ia acabar roubando as vistas da menina.

- Só abre passando por cima do meu cadáver! – Respondia a doida quando lhe desafiavam.

Rosarinho cresceu de olhos fechados.

Hoje tá lá a multidão de gente e bicho, tudo querendo saber se Rosarinho vai abrir os olhos e se são mesmo da cor das esmeraldas. Tem fila. Organizaram senha e eu já peguei a minha, mas não sei se vai dar tempo porque o enterro vai ser às cinco, antes de noitar, que de noite enterro não acontece. De noite alma nenhuma fica junto do corpo no caixão.

Ninguém disse que Rosarinho vai abrir os olhos, a não ser o povo todo da cidade. Não se sabe onde começou essa conversa, mas o fato é que taí o velório de Dona Socorro mais concorrido que o de Clodovil e os olhos de Rosarinho mais famosos que favela do Brasil.

Escola nunca frequentou e quase não saiu de casa. Só à Missa e com véu na cabeça, como as carolas de toda parte. Mesmo assim, Rosarinho era desejada pelos rapazes da cidade e dos arredores. Não raro saía um enxotado da casa por Dona Socorro, a doida, e acobertado pela vizinha Zefa, a gorda. Não preciso nem dizer que a doida e a gorda arengavam mais que político de oposição.

Cartas chegavam aos montes e imagino que falavam de seus olhos verdes nunca vistos, de como gostariam de abrir aquelas pálpebras alvas como toda a pele da mocinha miúda. Certamente queriam ser cada um a primeira visão de Rosarinho ao abrir seus olhos para o mundo.

De minha parte duvido que ela ainda não os tenha aberto nem ao ouvir cantar um colerinho apaixonado naquele pé de azeitonas pretas cuja copa beira a janela de seu quarto no sobrado da viúva. Sou dos poucos que duvida que Rosarinho nunca tenha aberto os olhos quando os de sua mãe estavam fechados. Quem de nós já o fez?

E nem é assim tão bonita a filha da morta, mas seus olhos tornaram-se o objeto de desejo de toda a pequena cidade. Fazer o quê? Esse povo não tem nem televisão que preste... Melhor que isso são os olhos de Rosarinho que estarão abertos hoje, se Deus quiser.

Mais doido que a doida Socorrinho é o prefeito João Sebastião, filho de portugueses sebastianistas. Pois não é que o maluco do JotaSeba - como era chamado - mandou vir a banda de música da cidade para o enterro da viúva? Aproveitou a multidão para divulgar o novo plano de atendimento do Ambulatório Municipal. Ia servir frutas e cafezinho na fila a partir de seis da manhã para alimentar os que tinham passado a noite toda ali esperando pra pegar a senha de atendimento. Ô povinho pra gostar de fila! Já acreditam até que o prefeito vai mandar servir almoço nesta aí do velório. Olhe! Tem gente até de garfo na mão!

O cortejo vai já sair e até agora nada de ninguém ver os verdes de Rosário. Quem entrou no velório pra se despedir da velha voltou dizendo que a moça tá de óculos escuros e que ninguém vê nada além das lentes negras. Tem pouca luz lá dentro e sem luz nenhum olho é verde.

Seu Martinho saiu esbravejando que tinha ficado horas na fila e nem conseguiu ver nada. Estava se sentindo enganado:

- É propaganda enganosa! Ficamos horas na fila à toa.

Mas uma boa alma teve a idéia de ir falar com a moça que até então estava achando que a multidão representava o apreço da cidade por sua mãezinha morta. Explicaram o motivo da algazarra e a moça ficou apavorada.

- Foi o que ela disse! Não vai abrir os olhos de jeito nenhum.

A multidão se alvoroçou. A Banda parou de tocar. Chamaram o prefeito. Ele tinha que fazer alguma coisa. Mas fazer o quê? Falar com o padre, ora essa! O padre é o único que pode convencer Rosarinho a abrir os olhos.

- O prefeito já está lá dentro falando com o padre.

Então vamos esperar que já já Rosarinho vem com seus lindos olhos esverdear a multidão sofrida.

Se já são quatro horas o cortejo fúnebre está saindo e ali bem pertinho do caixão vem a enlutada Rosarinho, véu negro sobre a fronte encobrindo os óculos escuros. Se estiverem abertos os olhos verdes veem o chão. Tão miúda e tão gigante, capaz de calar a exaltada multidão. O cortejo segue em silêncio.

- Correu a boca pequena que ela só vai abrir os olhos quando for jogada a primeira pá de cal no caixão da mãe. Dizem que quem disse foi o prefeito que disse que o padre disse que ela garantiu.

Então é já já, pois veja que o caixão está descendo e o coveiro está a postos com a pá. Mas Rosarinho mandou ele parar e ele parou. Ela quer se aproximar do túmulo da mãe e lhe reverenciar pela última vez. Muito bonita a sua atitude, pois a mãe é uma doida mas é a mãe.

Por isso, Rosarinho chegou bem perto da cova e lentamente deixou o tule negro rendado escorregar pela face. Ajudou com a mão e o pano seguiu bailando diáfano para junto de sua mãe. Olhares incrédulos. Multidão alvoroçando-se. Buxixo. Que pele alva, lisa tem a menina. Seus olhos devem ser mesmo um encanto e o que todos querem é ser encantados pelos verdes de Rosário. Ela sabe disso e aceita pois, se assim não fosse ela não estaria tocando seus óculos, tirando-os devagar. E deve ser doloroso pois sua expressão é de dor, sua cabeça pende pr´um lado e pro outro como se fugisse da luz. Segurando os óculos, Rosário esconde os olhos ainda fechados com as mãos. O prefeito, ao seu lado, era o único que podia ter feito isso, e pegou das mãos da menina os óculos. Pôs no bolso. Discretamente.

- Vai vender! Quanto vale os óculos de Rosarinho?

E finalmente Rosarinho foi retirando as mãos que lhe cobriam o rosto e vagarosamente, com dificuldade abriu seus grandes olhos sobre a estupefeita multidão. Após alguns segundos de inquietação e espanto, o povo foi-se embora.

- Vixi Maria! Rosarinho é cega.

Completamente. Seus olhos são verdes sim, mas não a íris ou a pupila, todo o seu globo ocular é de um verde hepático, doente, como sempre deve ter sido aquela mocinha protegida por sua mãe, a doida.

E como fala o povo e o povo fala mesmo, já andam dizendo por aí que as vistas de Rosarinho foram roubadas por alguém para quem ela abriu os olhos. E danaram-se a especular quem roubou as vistas da menina. Mas isso é outra história.

terça-feira, outubro 14, 2008

A escritora e o economista

O começo foram Letras. Eu era A, você B, eu C, você D. Brincávamos com elas e elas conosco. Poema vai, poema vem. Histórias de nós que vivemos entre vogais, as tais mais importantes, as nobres, as jovens, abertas para o mundo, como nós. Juramos amor eterno, juramos nunca nos separármos... Delas, das Letras.

E ainda fazíamos do J o guarda-chuva e do E a escada do escorregador A, quando passou por nós o furacão dos vinte anos. Nunca mais te vi. Não sei por onde andei, mas elas vieram atrás de mim, em música, em drama, em tela, e apareciam em tudo o quanto eu tocava. Como Midas que ao invés de ouro, Letras.

Ainda estão comigo, todas as vinte e três e mais as agregadas. São poucas, porém, diante dos brancos que se enrolam entre meus cabelos cacheados. Aliás, tenho perdido os cachos pelo tempo, pela vida, como perdi você e você, as Letras.

A história que você conta hoje não se forma mais em Letras, mas em números. Eu estranho falar de sentimentos em números: eu sou o 1, você é o 2 e o resto é infinito, coletivo demais para ser lírico; transitivo demais para ser amor. Hoje você conta o dinheiro do mundo. O universo de Letras é finito pra você, apenas um conjunto na infinitude dos arranjos numéricos.

Conto histórias porque imagino infinito como números, e se não encontro palavras para dizer é porque o momento pede silêncio e o silêncio muitas vezes é pura poesia. Não há palavra que me fuja, há as palavras que protejo, que não digo, que reservo. Os números te fogem às vezes?

Posso parecer um pouco magoada com essa, digamos, deslealdade, mas afinal estivemos mais tempo longe do que perto. Vi que os brancos também te invadiram, como te invadiram os ternos, as gravatas. Temos, afinal, cada um a vida que nos é possível. E o tempo leva, ainda que eu o fraseie e você o equacione, ainda que eu o conte em Letras e você em números. O tempo nos leva e não nos trará de volta nunca mais.

domingo, agosto 31, 2008

Minhas e de mais ninguém


Albergine sempre teve muita facilidade para envelhecer. Desde muito jovem, a cada vez que piscava o olho, envelhecia. Por isso, presta sempre atenção nos seus próprios passos, pois sabe que, invariavelmente, a levarão por uma estrada sem volta. Cada passo deve ser bem passado. Bem passado mesmo, como bife, nada de bem pensar nada, não dá tempo. Se pensar, olha Albergine envelhecendo de novo.

Logo ela, que não gosta de espelhos, não precisava deles para perceber que envelhecia a toda hora.

A primeira vez que percebeu que envelhecia foi quando viu nascer sua irmãzinha, dois anos mais nova que ela. Albergine notou que havia uma diferença entre o novo bebê e o velho bebê - ela. Uma diferença que as pessoas faziam questão de deixar bem clara:

- Albergine, não sufoque sua irmãzinha com o travesseiro. Não faça isso, querida, você já é uma mocinha.

A partir desse dia, em que percebeu que envelhecia, a pequena Albergine passou a vigiar o envelhecimento dos outros também, a começar por aquela monstruosa criaturinha no berço. Pelo menos duas vezes por dia, ela ia lá ver se o bebê já “era uma mocinha” também. Mas nada, não notava diferença nenhuma nele, ao contrário dela, que envelhecia.

Ela não sabe, mas perceber assim tão novinha que envelhecia foi sua grande sorte. Desde então, Albergine vive assim, vivendo. Não quer saber de outra coisa, a não ser viver. Tem feito tudo o que consegue e que lhe dá prazer.

Sua irmã, bebê, não tem pressa de sair do berço:

- Deixa pra depois.

Albergine não deixava nada pra depois. Agora ou nunca, esse era o leme de seu veleiro. Um veleiro que leva Albergine a navegar por dias e dias como ondas num mar ventoso.

Ainda hoje veleja, veleja, veleja, mas, por mais que insista em viver, viver, viver, Albergine não consegue deixar de envelhecer.

- Olhem! Minhas mãos, o que são essas ranhuras? – Perguntava-se, olhando para o berço onde, ali mesmo, como numa canoa, o monstro teimava em permanecer.

À sua volta, ninguém caía em desuso. Aqueles tios e tias enormes de sua infância, todos ficaram ali mesmo como estavam, olhando para ela que passava por eles envelhecendo sem parar. Esses dias mesmo, Albergine, com seu capacete branco, me procurou e, espantada, me questionou:

- Onde estão elas?

Estranhei a pergunta e fiz aquela cara que a gente faz quando não entende, arregalando os olhos e puxando os cantinhos da boca pra baixo.

- Não faz careta, que eu quero saber onde elas estão.

Entendi menos ainda e Albergine chegou bem pertinho de mim.

- Você é muito mais velha que eu, sempre foi, mas aí está você sem carquilhas, enquanto eu sou um mar de engelhas e pregas, uma casca de ovo quebradiça, uma noz.

Eu nunca tinha reparado, mas olhando para Albergine vi que seu rosto já bastante engelhado, ganhava uma ruga a mais a cada momento e outras duas cada vez que ela caçava rugas em mim. Enquanto eu, ao contrário, perdia as minhas rugas para ela nesses olhares caçadores.

- Por favor, Albergine, deixe-me as minhas rugas!

Foi então que a mulher entendeu que havia tomado para si a velhice do mundo. Todos ao seu redor permaneciam jovens enquanto ela envelhecia.

Resolveu que atracaria seu veleiro e ficaria ali, parada, devolvendo as rugas do mundo, mas o caminho de volta não encontra trilhos na velhice e, mesmo que todos, ao seu tempo, adquirissem cada qual as suas próprias engelhas, Albergine não se livrou das que roubou do mundo e morreu do jeito que só os velhos morrem.

segunda-feira, agosto 18, 2008

Quem quer comprar? Quem vai vender?

Joana Bacana estava toda contente. Ia começar a festa e ela já estava se preparando. Queria uma casa linda! Aliás, na casa dela, Joana era a única que gostava, que ficava contente, ninguém mais, mas ela não perdia uma. Ficava ali plantadinha em frente à televisão, esperando passar e assistia todas as propagandas eleitorais gratuitas ou não. O que ela queria, na verdade, era escolher pra quem ia vender seu voto este ano.

Na última eleição seu voto lhe valeu boa parte das telhas de seu telhado novo. Telhas de barro. O telhado ficou show, pelo menos a parte que conseguiu cobrir com as 120 telhas, porque o resto continua com aquele amianto quebrado que comprou fiado no Mercadinho da Construção. Estes ela teve que pagar do seu bolso mesmo e levou quase um ano para saldar a dívida. Aquele seu Geraldo do Mercadinho bem que podia ter se candidato também, mas ele tem horror à política.

Apesar do telhado novo, Joana Bacana não conseguiu matricular sua filhinha na escola pública no ano seguinte à última eleição, nem com a ajuda do comprador de seu voto, que afinal, se elegeu.

Esse ano, ela estava pensando em ganhar um pouco mais, afinal, pode vender dois votos: um para prefeito e outro para vereador. E para prefeito, vocês sabem, é mais caro.

Sentada em frente à televisão, Joana fazia seus planos, diante dos anúncios dos candidatos:

- Ô madame aí do sofá, vê se dá uma colher: vote em Zé Mané!

Joana Bacana dava um salto da poltrona, ofendida:

- Tá maluco? Que colher que nada, eu é que quero o meu filé.

E lá vinha uma candidata:

- Companheiras, não vendam seu voto, ele é a sua garantia de um futuro melhor...

Indignada, Joana ameaçava desligar a televisão:

- Onde já se viu, é muita cara de pau dessa daí. Quer o voto de graça... Depois vai lá ganhar os tubos nas minhas costas e às custas do meu voto.

E finalmente, o candidato ideal para Joana Bacana.

- Alô comunidade da Conchinchina Bacana, estaremos aí com nossa caravana da alegria no próximo comício. Compareça e leve pra casa a nossa promessa de dias melhores.

Esse sim, pensava Joana, esse é o homem. Se arrumava e partia pro comício com a filhinha nos braços, avisando a todos os vizinhos.

- Vambora minha gente, que a caravana da alegria tá chegando. – E todos do bairro seguiam para o comício.

Mal sabe a Joana Bacana que a caravana da alegria dura somente três meses, que passados, não trarão para ela nem para os seus vizinhos, os sonhados melhores dias.

Joana Bacana não sabe, mas vendendo seu voto, sua filhinha vai continuar sem escola, seu marido vai continuar sem emprego fixo, sua rua vai continuar sendo esse valão de esgoto a céu aberto, sua televisão vai continuar sendo a mesma que sua patroa lhe deu porque não tinha mais o azul e a imagem é aquela coisa assim entre o vermelho e o amarelo...

- Mas tem controle remoto!

Tá certo, Joana, tem o controle remoto da televisão, mas o controle da sua vida e de seus vizinhos vai continuar nas mãos daqueles para quem você vendeu seu voto. Os seus direitos como cidadã, tais como escola para sua filhinha, emprego para seu marido, esgoto sanitário para sua rua, saúde para você, sua família e sua comunidade, estes e outros direitos, sim, ficarão cada vez mais remotos.

Sai dessa, Joana, você é bacana e seu voto não é banana!

quarta-feira, julho 16, 2008

Responsabilidade feminina, o Brasil é das mulheres

51 % dos eleitores brasileiros são mulheres, o que significa dizer que a preocupação com os temas que envolvem as questões de gênero deveria aumentar, pelo menos nos discursos dos candidatos. Abordar assuntos tais como a violência doméstica contra a mulher, ainda que saibamos que após eleitos, poucos candidatos se darão ao trabalho de continuar o curso dessa briga, ainda assim, é um ponto a mais de avanço na luta pela erradicação deste mal, que atinge 15% das mulheres e que, na maior parte das vezes, ocorre dentro de seu próprio lar. A discussão deve ser estimulada em todos os níveis e aproveitando todas as oportunidades.

Outras questões a serem discutidas e que estão apontadas em pesquisa do IBGE como os temas de maior precupação das mulheres são: igualdade de salários com os homens; legalização do aborto; anticoncepção e saúde da mulher; falta de creches e alternativas para deixar os filhos enquanto trabalham fora; crescimento da aids nas mulheres e participação das mulheres na política.

Por outro lado, mesmo sendo em maior número de eleitores há alguns anos, não temos conseguido ainda uma representação política expressiva. Apesar da Lei de Cotas (9.504, de 1997), que estipula o mínimo de 30% nas vagas para candidaturas femininas por partido-coligação, aprovada após a participação de mulheres brasileiras na Conferência Mundial das Mulheres em Pequim, em 1996, o número de candidatas a cargos eletivos ainda é inferior ao necessário: 22,1% nas eleições municipais de 2004. Essa falta de candidatas espelha o quadro de ocupação do poder por parte das mulheres: somos pouco mais de 400 prefeitas num universo de mais de 5.500 municípios no Brasil.

Desse lado de cá da urna eletrônica, penso nas razões que nos impedem uma maior participação na política. E não é difícil encontrar os motivos. Começam no momento em que a mulher acorda e, antes de sair de casa para iniciar a maratona eleitoral de visitas, encontros, reuniões, comícios etc., precisa resolver "questões de ordem" doméstica como: Quem vai fazer o almoço para os meninos, já que o marido (quando ele mora com a família), na melhor das hipóteses, está no trabalho. No meio de um inflamado discurso sobre as prioritárias questões da trilogia eleitoral educação-saúde-trabalho, uma assessora lhe catuca as costas e informa baixinho:

- Maria ligou, disse que Joãozinho tá com febre e seu João ainda não chegou. O que é que ela faz?

Pronto, nossa candidata entrega o microfone a algum concorrente, largando de mão as soluções coletivas de médio e longo prazos para atender às suas próprias urgências.

Talvez por motivos como este, aliados ao fato de que a política no Brasil é elemento tradicionalmente masculino (todos os partidos foram fundados por homens; a estrutura eleitoral foi criada e recriada por eles, até a democracia, embora palavra de gênero feminino, é criação masculina), é que tenhamos hoje um desequilíbrio expressivo também nos índices de candidatos eleitos, isto é, os homens têm se saído melhor nas disputas eleitorais, se elegendo em maior número do que as mulheres. Nas eleições municipais de 2004, por exemplo, entre os candidatos, 16,8% se elegeram e, entre as candidatas, apenas 8,6% foram eleitas.

Entretanto, mais uma vez, somos nós, mulheres, que vamos decidir o destino do Brasil e os nossos próprios destinos. Está em nossas mãos o poder de eleger candidatos e candidatas que possam mudar esses índices e tornar nosso país uma verdadeira Democracia, em gênero, número e grau.

sexta-feira, junho 06, 2008

Um namorado pra Martinha

Martinha Santinha já cansou de estar sozinha. Desde que se separou do crápula do Marcelinho Coisa-Ruim – que a deixou sem nenhum tostão, diga-se de passagem – que a Santinha não pisca o olho pra ninguém. Mas isso está prestes a mudar, porque a Soninha Toda-Pura, que tem muita experiência na área, andou lhe dando uns conselhinhos básicos e Martinha ficou toda animada.

Traçou um perfil bem bacana e meteu-se num site de namoro na internet. Não tardou pra Martinha arranjar o primeiro pretendente. Um sujeito da Lapônia (da Lapônia? E a Lapônia existe mesmo?) que queria casar com ela – mas só virtualmente. Falou até com o pai de Martinha (em laponês?), tudo bem certinho...

A Santinha esperou mais de um ano pela viagem à Lapônia. Chegou mesmo a desfazer o perfil tão bonitinho do site (ele exigiu) e falava com o “Lapom” pelo MSN, por e-mail, por telefone (em laponês?) etc. Esperou a aurora boreal, mas o sol da Lapônia não nasceu mais... Toda-Pura condoeu-se da amiga:

- Não desista, minha amiga, veja se consegue um namorado mais pertinho. A Lapônia é muito longe, tão longe que o Papai Noel só sai de lá uma vez por ano. Olha, faz de conta que você sou eu e namora esse aqui, tá vendo? Parece ser bem legal esse homem... Vai, faz de conta que você é a Mel-de-Cachos...

E lá foi a Martinha disfarçada de Mel-de-Cachos namorar a indicação de Toda-Pura. Ficou encantada com ele. Um gentleman, mas ao mesmo tempo, estranho.

- Ele entra no banheiro e fica lá falando sozinho...

- Não está falando sozinho não, Martinha, deve estar falando com outra mulher escondido no celular...

Naturalmente, Martinha reclamou com o namorado, que ficou furioso:

- Você está desconfiando de mim? Assim não vamos poder continuar, uma relação sem confiança não pode existir...

E blá-blá-blá, blá-blá-blá... Tanto, tanto, que a Santinha se sentiu culpada por desconfiar do homem e parou de ouvir as conversas dele atrás da porta do banheiro. Mas, depois de algumas ótimas noites de ótimo sexo, como pouco Martinha havia tido até então (o Coisa-Ruim era ruim até na cama!), ele sumiu. Sumiu, sem deixar vestígios. Não atendia o celular, nunca estava em casa, enfim... Tomou doril, e deixou a pobre da Martinha sozinha de novo, à mercê dos conselhos de Soninha Toda-Pura:

- Desta vez, Santinha, vamos arrasar no seu perfil. Nada de Mel-de-Cachos, Sol, Amora, sem essa... Que tal “Lili Atmosfera”? Pra abalar... Dessa vez você vai encontrar o homem ideal.

- Não sei não... Essa coisa de “homem ideal”... E se o “homem ideal” for mesmo gay?

- Não desista, Martinha, ou você vai passar o Dia dos Namorados sozinha...

- Isso nunca.

Decidida, Santinha marcou mais um encontro. Dessa vez, o homem era tudo de bom.

- Nem celular ele tem! – Contou Martinha para a amiga Toda-Pura. Tem passado dias e noites lá em casa. Disse que não consegue mais ficar longe de mim... Ai, ai, acho que ele está apaixonado. É consultor. Viu só que profissão bonita? Trabalha em casa mesmo, pela internet, dando consultoria. Só não entendi bem em que área, mas fiz de conta que entendi pra ele não me pensar que sou ignorante, né?

Desolada com a ingenuidade da Martinha, Soninha Toda-Pura resolveu ajudar a amiga e tomou umas consultorias com o especialista. Primeiramente, pela internet, depois marcou encontro com o consultor da Santinha e o desmascarou.

Pobrezinha da Martinha Santinha, dessa vez demorou a se recuperar. Mais um “coisa-ruim” na sua vida e ela ia se mandar pelo espaço sideral em busca de um marciano que lhe compreendesse e amasse verdadeiramente.

- Não quero mais saber desses homens de internet. Vou ao baile.

Comprou um vestido lindo, um sapatinho confortável e partiu pro baile, levando a Toda-Pura a tiracolo. Nada como uns bons conselhos.

Dessa vez, foi a Soninha que arrumou um par rapidinho. Um tremendo pé-de-valsa com quem dançou a noite inteira, enquanto Martinha Santinha continuava sozinha e se consolava em passar diante daquele espelho maravilhoso perto da entrada do salão, para ver mais uma vez e mais uma vez o quanto estava bela naquele novo traje de baile. Mas ninguém a tirava pra dançar...

Não contou conversa. Saiu pelo salão convidando todos os que estavam disponíveis, menos aquele lá do canto com a cara cheia de espinhas. Aquele não, né? É feio demais... Dançou, dançou, dançou, mas beijo na boca que é bom, nada. Enquanto isso, Toda-Pura rodopiava no salão com o mesmo sujeito a noite toda, feliz da vida!

Faltava menos de vinte e quatro horas para o Dia dos Namorados. Mesmo que conseguisse um agora nem daria tempo para comprar o presente.

- Vou desistir. Quer saber? Melhor ir pra casa, dormir na minha caminha macia e sonhar...

Pegou a bolsa e abandonou o ringue. Já estava quase vencendo os sei-lá-quantos degraus da escada na saída do baile, quando, do alto de seu novo e confortável sapatinho, levou aquele tombaço. Uns riram, né? Porque a cena é engraçada mesmo, ainda mais que seu vestidinho foi parar na cintura, mostrando a cinta que, diga-se de passagem, já não era assim tão nova. Mas alguém correu em seu socorro, ajeitou rapidamente seu vestido, pegou com delicadeza seu pé torcido e ajudou-a a levantar. Alguém de espinhas no rosto, feio que só “o cão comendo mariola”. Ela custou a acreditar. Um momento tão especial, tanta gente linda no baile para ajudá-la e aquele feioso se adiantou, tirando-lhe a chance de ser salva por um príncipe.

Mas, o feioso a amparou e, pouco antes depois da meia-noite chegaram ao pronto-socorro onde os médicos trocaram o bonito sapatinho por uma enorme bota branca. E o feioso ali ao lado dela o tempo todo. Os médicos se dirigiam a ele como se ele fosse um parente, o namorado ou o marido...

- Argh! Ai que agora pago meus pecados – Pensou a Santinha – Ele é tão feio...

Madrugada, dia 12. O homem levou Santinha Bota-Branca em casa, colocou-a no sofá da sala, despediu-se cordialmente, deixou um telefone para o caso dela precisar de algo e partiu.

- Mas ele é tão gentil... – E dormiu ali mesmo no sofá.

Tão logo o dia clareou, despertou com a campainha. Era o florista com dúzias de rosas vermelhas e um cartão: “Desejo que se recupere logo e quem sabe vamos tirar um ao outro para dançar no próximo baile”. Martinha olhou o nada e pensou:

- Até que ele não é assim tão feio...